Com elegância, força e respeito, Fabiana Cozza supera polêmica racial no teatro ao retornar para a música no show “A Dama Dourada”, no qual reverencia a obra de Dona Ivone Lara e que será lançado em disco em 2019 pela gravadora Biscoito Fino.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Fabiana Cozza em “A Dama Dourada”, com Alessandro Penezzi
Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪✪
A cantora Fabiana Cozza enfrentou forte momento de sua carreira em junho deste ano, quando foi alvo de uma enorme polêmica racial nas redes sociais por ter sido convidada a interpretar a cantora e compositora carioca Dona Ivone Lara (1922-2018), a Rainha do Samba, no musical “Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro”.
Os críticos da internet afirmaram que a pele de Fabiana seria clara demais para que ela pudesse ser Dona Ivone, mulher negra de pele escura, justificando seu ponto de vista pela tese do “colorismo”, segundo a qual uma pessoa negra sofre mais racismo quanto mais escura sua pele for.
Na época, em meio a múltiplos ataques nas redes, Fabiana decidiu deixar o projeto teatral. Contudo, escolheu não atacar de volta quem a criticou. Muito pelo contrário. “Eu não sou uma vítima”, disse à época em entrevista à colunista Eliane Brum, do jornal El País, fazendo ela mesma a mais brilhante e profunda análise sobre o episódio, no qual enxergou muita dor.
Se viver Dona Ivone Lara no teatro lhe foi negado, a música jamais questionou o talento e a devoção de Fabiana Cozza para com a obra de Dona Ivone Lara, de quem foi amiga íntima.
Fabiana é uma das cantoras de samba mais respeitadas não só de São Paulo quanto do Brasil, com farta trajetória trilhada desde seu nascimento, praticamente na quadra da escola Camisa Verde e Branco, da qual seu pai, Oswaldo dos Santos, é baluarte. A música esteve ao lado da artista naquele momento tão difícil e lhe apoiou fortemente nos bastidores durante o episódio de grande exposição pública.
E é para os braços da música que Fabiana Cozza volta, cantando justamente aquela que lhe foi proibida de viver no teatro: Dona Ivone Lara.
Na última sexta (23), ela apresentou para um público compenetrado e boquiaberto a cada verso o show “A Dama Dourada”, acompanhado pelo exímio violonista Alessandro Penezzi. Ambos em uma química que envolveu toda a Casa Natura Musical, como que em um rito de passagem para tempos melhores.
O repertório do show, cujo título é o mesmo de um artigo universitário que Fabiana escreveu para a UFBA sobre Dona Ivone, é fundamentado em canções de Dona Ivone Lara e vai virar disco no próximo ano pela Biscoito Fino, ela anunciou no palco.
Todos ali viram Fabiana Cozza superar com extrema elegância a polêmica racial do teatro e retomar seu potente lugar na música, defendendo o samba e a sua negritude, sim — ela faz também um outro show, “Dos Santos”, que leva o sobrenome de seu pai, que dedica exclusivamente às canções com temática afro-brasileira —, de uma maneira sutil e forte ao mesmo tempo, sem deixar de prestar toda a reverência à sua grande mentora e amiga Dona Ivone Lara, que, é importante dizer, havia escolhido Fabiana para interpretá-la no teatro.
Ao cantar “Tendência”, clássico de Dona Ivone, os versos ganharam ainda maior profundidade diante de tudo que aconteceu. Foi de arrepiar a alma ouvir essa letra:
“Não, pra que lamentar o que aconteceu? Era de esperar. Se eu lhe dei a mão foi por me enganar. Foi sem entender que amor não pode haver. Sem compreensão, a desunião tem de aparecer. E aí está o que aconteceu. Você destruiu o que era seu. Você entrou na minha vida, usou e abusou, fez o que quis. Agora se desespera, dizendo que é infeliz. Não é surpresa pra mim. Você começou pelo fim. Não me comove o pranto de quem é ruim. E assim, quem sabe essa mágoa passando você venha a se redimir dos erros que tanto insistiu por prazer, pra vingar-se de mim. Diz estar carente de amor. Então você tem que mudar. Se precisar pode me procurar”.
Quem viu o que aconteceu na Casa Natura Musical, caso do Blog do Arcanjo no UOL, sabe profundamente que Fabiana Cozza cantando Dona Ivone Lara é inquestionável. Só ousa ser contra isso quem jamais terá a mínima sensibilidade artística para compreender a força que emana quando sua voz encontra os versos da Rainha do Samba.
Diante da obra de Dona Ivone Lara, Fabiana Cozza é pura entrega verossímil.
“Não entendi o enredo desse samba, amor”, Fabiana prosseguiu cantando, para logo dar indícios da sábia decisão tomada: seguir cantando Dona Ivone Lara, finalizando um ano tão turbulento em paz, prenunciando um novo “Alvorecer”, como compôs a própria Dona Ivone: “Quero solução, sim, pois quero cantar, desfrutar dessa alegria que só me faz despertar do meu penar”. E a paulistana ainda pegou emprestado o “Canto de Rainha”, de Sombrinha e Arlindo Cruz em homenagem a Dona Ivone, para reafirmar: “Seu canto entrou na minha vida e fez o que quis. Hoje até posso afirmar: samba é minha raiz”.
Viva Dona Ivone Lara. Viva Fabiana Cozza. Juntas.