Crítica: Zé Celso devora Xuxa e mata o mito em Roda Viva 50 anos depois

Revelação do elenco, a atriz Clarisse Johansson interpreta Xuxa, em homenagem feita por Zé Celso, como ídolo devorado antropofagicamente pelo público em “Roda Viva” de 2018: peça histórica do Teat(r)o Oficina a partir do texto de Chico Buarque ganha nova montagem 50 anos depois da primeira encenação pelo mais emblemático diretor do teatro brasileiro – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Com ares de genialidade e forte diálogo com o Brasil atual, a peça “Roda Viva” de Chico Buarque volta a ser encenada por Zé Celso e seu Teat(r)o Oficina 50 anos depois da estreia no fatídico ano de 1968.

Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Roda Viva”, de Chico Buarque sob direção de Zé Celso com o Teat(r)o Oficina
Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪✪

Um clima de momento histórico pairou sobre os espectadores que disputaram os ingressos para a estreia da peça “Roda Viva” nesta quinta (6) em São Paulo.

A obra de Chico Buarque sob direção de Zé Celso com seu Teat(r)o Oficina voltou 50 anos depois no palco do Teatro do Sesc Pompeia, projetado pela mesma arquiteta Lina Bo Bardi que criou a sede do sexagenário grupo na rua Jaceguai, 520, no Bixiga, onde a peça será encenada entre 23 de dezembro e 10 de fevereiro.

Na plateia, estiveram nomes como a cineasta Monique Gardenberg, o cantor Veronez, os atores Guilherme Leme, Beto Mettig e Pascoal da Conceição e os políticos Fernando Haddad, Eduardo Suplicy e Gabriel Chalita, além de figuras importantes da área cultural paulistana.

Veja os bastidores da estreia de “Roda Viva” nas fotos de Jennifer Glass

A atriz Clarisse Johansson pula no colo de Fernando Haddad, observados por Gabriel Chalita, na estreia de “Roda Viva”, 50 anos depois da montagem histórica de 1968 – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Todos ávidos por ver a nova versão da peça que estreou pela primeira vez em 17 de janeiro de 1968, “o ano que não terminou” como sabiamente definiu o jornalista Zuenir Ventura, no Teatro Princesa Isabel, no Rio, depois seguindo para temporada no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo.

A montagem cinquentenária celebra ainda os 60 anos do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, o mais longevo grupo teatral do Brasil e o mais respeitado em todo o mundo. Sua sede, inclusive, foi eleita o mais belo teatro mundial pelo tradicional jornal britânico The Guardian.

Assim como em 1968, em 2018 o coro de “Roda Viva” quebra a quarta parede que separa artistas do públicos, fundindo a todos no te-ato criado por Zé Celso para celebrar o “aqui agora” – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

A enérgica montagem de Zé Celso para a história de Benedito da Silva, ídolo de massas fabricado pela mídia e a indústria cultural, o Ben Silver, marcou para sempre a história do teatro brasileiro em 1968.

Foi quando Zé apresentou novidades em sua encenação antropófaga e tropicalista: a quebra da quarta parede que divide público e artistas, integrando a todos na obra, e criação do coro nas peças do Oficina, com artistas libidinosos se fundindo aos espectadores em uma relação do “te-at(r)o aqui agora”.

Roderick Himeros interpreta o ídolo de massar Ben Silver, ou melhor, Benedito da Silva, seu verdadeiro nome, personagem criado por Chico Buarque em “Roda Viva” – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Nesta remontagem 50 anos depois, Zé Celso manteve a força da encenação histórica original, mas trouxe também o frescor e um farto diálogo com o conturbado — e assustador para muitos — Brasil de hoje, fazendo a peça se fundir aos novos tempos.

Assim, a força da internet supera a da televisão na criação dos ídolos de massa na montagem atual, e o Whatsapp ganha lugar na hora de manipular corações e mentes.

Detalhe do público na estreia de “Roda Viva” no Sesc Pompeia, com Fernando Haddad sentado ao lado de Gabriel Chalita – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

O fato de o candidato derrotado à presidência no segundo turno, Fernando Haddad, estar presente na plateia, tornou tudo ainda mais performativo e repleto de significados apreendidos com avidez pelo público.

Mesmo impondo novidades, Zé Celso não deixou de ser respeitoso com a própria obra. Manteve cenas históricas, como quando o cantor fabricado Ben Silver é devorado pelo coro-público, com todos comendo o fígado do artista, respingando sangue por todos os lados — o que na época provocou reação da ditadura e da extrema direita, que chegou a invadir uma das sessões da peça para espancar os artistas.

A famosa cena do fígado: Ben Silver é devorado pelo público em “Roda Viva” – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Coro da peça “Roda Viva” em 1968, com nomes como Zezé Motta e Pedro Paulo Rangel: Zé Celso está sem patrocínio para remontagem – Foto: Arquivo Oficina

Chico Buarque, com apenas 24 anos, acompanha os ensaios de “Roda Viva” em 1968: peça do Oficina dirigida por Zé Celso entrou para a história como um dos grandes marcos do teatro brasileiro e mundial – Foto: Arquivo Oficina

No elenco original de “Roda Viva” estiveram atores icônicos de nossa dramaturgia, como Paulo César Peréio, Zezé Motta, Pedro Paulo Rangel, Marília Pêra e Marieta Severo, entre outros. Heleno Prestes e Rodrigo Santiago deram vida ao protagonista Benedito da Silva, o Ben Silver, na primeira versão. O personagem agora é assumido por Hoderick Himeros, que confere fragilidade ao cantor.

O novo elenco ainda traz Camila Mota como Juliana, a namorada do ídolo, Guilherme Calzavara, como Anjo que o levanta na mídia, Joana Medeiros, como o Capeta que o derruba, além de Marcelo Drummond, na pele de Mané, amigo antigo de Ben que a tudo assiste, sua ascensão e posterior derrocada, sempre com ares de deboche. Joana e Marcelo se destacam como as duas figuras mais potentes do elenco central, seja quando Joana impõe sua força cênica ou quando Marcelo brinda o público com seu épico ar debochado e desconcertante.

Marcelo Drummond se destaca no elenco central de “Roda Viva” com seu ar debochado e épico – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Mas, assim como ocorreu em 1968, quem rouba a cena em 2018 é o coro: intenso e extremante presente, ciente de sua missão de manter a peça com energia em riste. E a este se soma ainda o vigor da virtuosa banda do Oficina, formada por Felipe Botelho, Amanda Ferraresi, André Stanan, Carina Iglecias Giuliano Ferrari, Ito Alves e Moita Mattos.

O coro inesquecível é formado por Cafira Zoé, Carol Castanho, Clarisse Johansson, Cyro Morais, Danielle Rosa, Fernanda Taddei, Isabela Mariotto, Kael Studart, Kelly Campelo, Lucas Andrade, Marcella Maia, Marcelo Dalourzi, Mayara Baptista, Nash Laila, Nolram Rocha, Sylvia Prado, Tony Reis, Tulio Starling, Viviane Clara e Zé Ed.

A potente atriz Clarisse Johansson contracena com o protagonista Roderick Himeros observados pela câmera de Igor Marotti Dumont em “Roda Viva” – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Mas, uma atriz se destaca mesmo em meio a tanta potência no coro por seu excesso de talento e de carisma: Clarisse Johansson. É ela quem incorpora com vigor a Xuxa recriada por Zé Celso para ser devorada pelo público, de forma antropofágica, bem antes de Ben Silver, em uma associação direta e genial do diretor-dramaturgo e também uma homenagem a Xuxa como grande ídolo popular brasileiro, artista reverenciada agora pelo teatro de Zé Celso.

Veja os bastidores da estreia de “Roda Viva” nas fotos de Jennifer Glass

E, como bem definiu o cantor Veronez ao ver Clarisse Johansson em cena, “essa atriz tem um carão de Marília Pêra”. Isso é fato. Trata-se da grande revelação de “Roda Viva” 2018.

Para além do elenco, a nova montagem também faz referências explícitas ao último pleito eleitoral presidencial no Brasil, com Zé Celso destrinchando no palco a construção midiática e digital de certo mito político, ressaltando a manipulação de massas e o país fortemente dividido em crise e em embate, que acabam por matar o próprio mito criado.

Brasil atual dividido e em enfrentamento é recriado pela genialidade de Zé Celso na remontagem de “Roda Viva” – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Toda a área técnica de “Roda Viva” é primorosa. Seja os figurinos e maquiagens impressionantes de Sonia Ushiyama Souto com assistência de Selma Paiva e Marcio Tassinari ou a iluminação propositiva e onírica de Guilherme Bonfanti e ainda a exuberante arquitetura cênica e direção de arte de Carila Matzenbacher e Marília Gallmeister.

Para além destes nomes se prolonga o elogio deste crítico à vasta equipe técnica da peça, cada um presente vigorosamente em sua função, como os operadores do canhão seguidor Pedro Felizes, Ana Gabriela Rossetto e Filipe Sampaio.

Outra dádiva presente em “Roda Viva” é a fusão do teatro com a arte cinematográfica, com Igor Marotti Dumont, o Glauber Rocha do Oficina, criando um filme da peça em tempo real, com o público testemunhando seu prazer criativo a cada cena.

Com fortes referências às matrizes africanas, como pensado originalmente por Flávio Império em 1968, o coro passeia entre o público do Sesc Pompeia na estreia de “Roda Viva” 50 anos depois pelo Teat(r)o Oficina – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Também destaque no coro, a atriz Danielle Rosa contracena com espectador na estreia de “Roda Viva”, 50 anos depois, pelo Teat(r)o Oficina dirigido por Zé Celso – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Com “Roda Viva”, Zé Celso reconquista a proeza histórica já alcançada ano passado em “O Rei da Vela”: poder dirigir 50 anos depois uma nova versão para um espetáculo que o consagrou na história do teatro brasileiro e mundial. Qual outro diretor teve tamanho privilégio em vida?

E, ao fazê-lo com vigor e o mesmo atrevimento artístico de sua juventude, Zé Celso prova que está mais vivo e forte do que nunca, pronto para a batalha em prol de sua arte livre da qual jamais abriu mão, custe o que custar.

Assim, ele faz de “Roda Viva” um espetáculo altamente emocionante, performativo e, obviamente, obrigatório de se ver e de se aplaudir de pé.

O diretor do Teat(r)o Oficina Zé Celso recebe os cumprimentos do amigo Eduardo Suplicy logo após a estreia de “Roda Viva”, 50 anos depois – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

O coro de “Roda Viva”: marca histórica da montagem de Zé Celso para o texto de Chico Buarque – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Cena de “Roda Viva” 50 anos depois com o Teat(r)o Oficina – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

A atriz Camila Mota como Juliana em cena de “Roda Viva” – Foto: Jennifer Glass – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Cena de “Roda Viva” 50 anos depois com o Teat(r)o Oficina – Fotos do Ofício – Divulgação Oficina – Blog do Arcanjo – UOL

Veja os bastidores da estreia de “Roda Viva” nas fotos de Jennifer Glass

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