Opinião: Apresentar o Jornal Nacional é coisa de preto

Marco histórico da representatividade: Maju Coutinho é a primeira mulher negra a apresentar o “Jornal Nacional” na Globo, noticiário mais visto do Brasil – Foto: Reprodução/Globo – Blog do Arcanjo – UOL

Um ano e três meses depois de o jornalista William Waack perder o posto de apresentador e chefe do “Jornal da Globo” após ser divulgada sua frase em tom racista “é coisa de preto”, dita por ele nos bastidores do telejornal, a Globo colocou a jornalista Maria Júlia Coutinho, a Maju, para apresentar no último sábado (16) o principal noticiário do país, o “Jornal Nacional”.

O espaço de maior poder no jornalismo da emissora jamais havia sido ocupado por uma mulher negra até então. Nem mesmo Glória Maria, que foi repórter do mesmo noticiário por anos e pioneira na representatividade negra nas telas da Globo havia tido tal chance. Por quê?

A enorme comoção com o fato de uma mulher negra apresentar o telejornal mais visto do Brasil pela primeira vez em 50 anos, como bem lembrou o colega colunista Mauricio Stycer, foi enorme. Joyce Ribeiro, jornalista negra pioneira no comando de telejornais e que no ano passado foi a primeira profissional negra da história a comandar um debate presidencial, parabenizou a colega, como contou reportagem de Paulo Pacheco aqui no UOL.

E é preciso fazer realmente muito barulho em torno de Maju no “JN”. Afinal, trata-se de um marco da representatividade negra em nosso país, sempre tão desigual e marcado por fortes traços de um profundo racismo estrutural e institucional, que  faz negros serem vistos geralmente em postos subalternos, quase nunca em destaque ou no comando.

A televisão e o jornalismo, lugares de grande visibilidade social, não são exceção neste triste cenário fortemente marcado por nossa violenta herança escravocrata centenária — tão debatida na última semana, por conta do assassinato de um jovem negro por um segurança de supermercado ou pela luxuosa festa de aniversário na Bahia de Donata Meirelles, que virou polêmica internacional ao reproduzir, mesmo que talvez de modo não pensado, imagens altamente escravocratas e reiterativas do racismo estrutural brasileiro.

Não custa lembrar que a abolição da escravidão no Brasil tem apenas 130 anos. Muito pouco tempo em termos históricos.

Por isso, a chegada de Maju ao topo do departamento de jornalismo da emissora na qual atua é realmente um marco histórico. E é bom lembrar que Maju não está sozinha nessa corrida. É preciso dar visibilidade e celebrar cada preto e preta que conquista espaço de visibilidade e de poder em nosso país, seja qual for sua profissão. Porque trata-se de um potente recado no cotidiano contra o racismo estrutural e institucional.

É preciso celebrar o filme “Pantera Negra” como blockbuster; a filósofa Djamila Ribeiro como formadora de opinião; Rachel Maia como grande executiva de multinacionais; Conceição Evaristo como grande nome de nossa literatura — a Academia Brasileira de Letras perdeu a chance histórica em lhe conceder o fardão de imortal—, Joaquim Barbosa no mundo jurídico; Hilton Cobra, Sidney Santiago, Lucelia Sergio, Taís Araújo, Lázaro Ramos, Raphael Garcia, Jé Oliveira, Aysha Nascimento, Tony Reis, Denilson Tourinho e Flávio Rodrigues na atuação; Glenda Nicácio e André Novais Oliveira no cinema; Liniker, Luedji Luna, Raphael Salles, Larissa Luz, Xênia França e Rubia Divino na música; e tantos outros de competência inquestionável que vêm conquistando destaque nos últimos tempos.

Este próprio colunista, que sempre foi um dos raros negros nas principais redações do país, tem enorme orgulho e a consciência da representatividade que é ocupar tal posto neste UOL, maior e mais lido portal do Brasil.

Que a televisão, dona de grande poder representativo, consiga, a partir da grande repercussão de Maju no “JN”, entender que jornalistas negros, ou com outros padrões de corpos que ainda não são enxergados como padrão, podem e devem atuar não só nos bastidores das redações como também frente às câmeras. Talentos negros existem aos montes, mas precisam de uma oportunidade.

É preciso aqui ressaltar dirigentes pioneiros como Marcílio Lana, então diretor de jornalismo da TV UFMG em Belo Horizonte nos idos de 2004 e que, bem antes das discussões identitárias e de representatividade ganharem a pauta do dia, colocou dois profissionais negros como apresentadores de telejornal, Zirlene Lemos e este vosso colunista, ambos no começo de carreira.

Colocar rostos negros na tela, onde brancos ainda são a esmagadora maioria mesmo em um país de maioria populacional negra, é algo urgente. E trata-se de uma demanda do público negro, desejoso de ver-se representado no jornalismo, na novela, nas séries, na vida. Não dá mais para esperar. É preciso agir.

No último sábado, crianças negras em todo o Brasil puderam assistir às principais notícias do dia sendo apresentadas por uma pessoa parecida com elas, do alto de sua competência e seu cabelo black. Isso inspira futuras gerações de pretos e pretas a conquistarem novos lugares sociais diferentemente daqueles que a sociedade brasileira até hoje costuma designar aos descendentes de pessoas escravizadas no passado. O recado de Maju é altamente potente: agora, apresentar o “Jornal Nacional” é coisa de preto.

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