Crítica: Potente, O Barbeiro de Sevilha negro faz história no Municipal
O Theatro Municipal de São Paulo acerta na decisão de abrir sua programação de 2019 com montagem impecável de uma das óperas mais populares e divertidas da história, “O Barbeiro de Sevilha”. E com um detalhe importante e cheio de representatividade: o talentoso protagonista Fígaro é interpretado por um artista negro, o barítono David Marcondes.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“O Barbeiro de Sevilha” ✪✪✪✪✪
Avaliação: Ótimo
A ópera “O Barbeiro de Sevilha” volta 24 anos depois ao palco mais nobre do teatro paulista com um importante elemento de representatividade étnica: em um dos dois elencos escalados, justamente aquele visto pelo Blog do Arcanjo no UOL, o protagonista é negro.
Cabe ao talentoso e carismático barítono David Marcondes, cuja voz é pura potência sonora, dar vida ao barbeiro Fígaro, o faz-tudo da cidade de Sevilha. Escalar tal competente profissional para o posto de protagonista de uma das óperas mais aclamadas é um avanço na história de nossas óperas, onde artistas negros com destaque são raríssimos.
A escalação do talentoso artista se une a outros importantes marcos da representatividade negra recentes, como Maju Coutinho apresentando o “Jornal Nacional”, o filme de super-herói negro “Pantera Negra” ou as peças de teatro que apresentaram novas leituras étnicas para clássicos como “Navalha na Carne Negra” e “Gota D’Água {Preta}”.
Com seu barbeiro construído entre o deboche e a pilhéria, David Marcondes domina completamente a cena, fazendo um sedutor jogo de humor que leva a plateia ao êxtase desde sua primeira aparição, quando canta a plenos pulmões a famosa música que dá nome ao seu personagem, “Fígaro”, divertindo-se com a mesma.
Seus colegas de elenco estão todos à altura e imbuídos no mesmo jogo teatral que faz desta uma das mais alegres montagens de ópera no Theatro Municipal, tirando a capa de sisudo ao nosso templo da arte. É um espetáculo capaz de agradar de crianças a idosos — os ingressos esgotados e a sessão extra nesta sexta-feira comprovam seu sucesso e deveria ser mantido mais tempo em cartaz, afinal, público haverá.
A obra do italiano Gioachino Rossini estreou em 1816. Com libreto do escritor italiano, Cesare Sterbini, é inspirada em uma peça homônima do francês Pierre Beaumarchais e já foi montada 36 vezes no centenário Theatro Municipal de São Paulo.
O enredo se passa na cidade espanhola de Sevilha, onde o barbeiro Fígaro ajuda um jovem conde a raptar sua amada, que vive trancafiada em uma mansão por um rico local, que é apaixonado pela jovem com quem deseja se casar mesmo que à força.
A jovem Rosina criada pela espirituosa mezzo-soprano Luciana Bueno diverte o público com sua agonia do claustro misturada ao desejo de liberdade e de amor. Seu algoz, o desconfiado Dr. Bartolo, também é interpretado com bravura pelo baixo Saulo Javan.
O Conde de Almaviva encontra a leveza dos apaixonados na pele do excelente tenor Anibal Mancini, outro que se destaca na nova montagem do Municipal. Outro grande achado é o opulento baixo Matheus França, como o professor de música Don Basilio, que acompanha as peripécias da casa, sempre tentando tirar vantagem para si e presenteando o público sua voz profunda e impactante.
Ainda brilham em cena a soprano Denise Yamaoka, como a criada Berta, personagem que ganha mais peso nesta montagem, e o barítono Vicente Sampaio, como o músico seresteiro Fiorello. Completam o competente elenco visto pelo Blog do Arcanjo no UOL ainda o baixo Andrey Mira, como Sargento, e os atores igualmente presentes em cena Fabrizio Santos, como o sonolento empregado Ambrogio, e Sergio Seixas, como Notário.
A obra ainda conta com o outro elenco que se alterna, igualmente competente, formado pelo barítono Michel de Souza (Fígaro), a mezzo-soprano Luisa Francesconi (Rosina), o tenor Jack Swanson (Almaviva), o baixo Sávio Sperandio (Bartolo), o baixo Carlos Eduardo Marcos (Basilio), o barítono Vitor Mascarenhas (Fiorello) e a soprano Débora Dibi (Berta).
Para além das atuações brilhantes e do peso da representatividade étnica com seu protagonista negro, a nova montagem de “O Barbeiro de Sevilha” é um deleite para o público em todo o seu conjunto, no qual se destaca a cenografia cuidadosa e os 75 figurinos coloridos e exuberantes — e de ares circenses — criados por José de Anchieta, um dos artistas de bastidores mais importantes do teatro paulista.
Roberto Minczuk faz uma delicada direção musical com sua atenta e virtuosa orquestra, que se alia à direção cênica impecável de Cleber Papa, fazendo com que “O Barbeiro de Sevilha” se comunique de forma direta e simples com o público, abrindo mão de qualquer ar pedante que se possa imaginar em uma ópera, e, sim, investindo em sua leveza e olhar humorado para as peripécias universais da vida.
Assim, a dupla Minczuk-Papa constrói um espetáculo potente que conquista seu público pelo coração e pelo riso, fazendo de “O Barbeiro de Sevilha” uma experiência artística agradável, divertida e inesquecível.