Crítica: Nunca Fomos Tão Felizes destrói crença na bondade humana
Diretor e dramaturgo profícuo, Dan Rosseto cria um intenso drama em “Nunca Fomos Tão Felizes”, no qual destrói, sem piedade, qualquer tipo de afeto na vida a dois. A peça pode ser vista até 12 de maio, no Teatro Itália (av. Ipiranga, 344), em São Paulo. Sexta e sábado, 21h, e domingo, 18h, com ingresso a R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia).
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Nunca Fomos Tão Felizes” ✪✪✪✪
Avaliação: Muito Bom
Pequenas frustrações cotidianas a dois quando se acumulam tornam-se uma destruidora avalanche de emoções capaz de demolir qualquer tipo de afeto.
Isso é jogado na cara do público paulistano sem piedade alguma na peça “Nunca Fomos Tão Felizes”, com direção e texto de Dan Rosseto, propositivo e incansável nome da cena paulistana e que faz sua dramaturgia caminhar nos últimos tempos por terrenos sórdidos e traiçoeiros.
A premissa da obra é um explosivo encontro entre dois casais: um mais velho, aparentemente com o poder e a segurança que o dinheiro traz, e outro mais jovem, aparentemente com a felicidade e ambição típicas da juventude.
Contudo, à medida em que os drinques avançam generosos, verdades indigestas surgem à tona em forma de pequenas ou grandes catarses emocionais.
Quem tem uma leve cultura cinematográfica não deixa de remeter a peça ao clássico do cinema “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, filme de 1966 de Mike Nichols, baseado na peça teatral escrita por Edward Albee, que uniu em cena o casal Elizabeth Taylor, que levou o Oscar de Melhor Atriz, e Richard Burton, que perdeu o Oscar de Melhor Ator.
O clima era tão denso nas filmagens que a jovem atriz Sandy Dennis, então grávida de poucos meses, sofreu um aborto no set. Ela também ganhou o Oscar, o de Melhor Atriz Coadjuvante, enquanto que seu par no longa, George Segal, foi indicado a Melhor Ator Coadjuvante, mas perdeu, assim como Burton.
Mas, voltemos à peça de Dan Rosseto. Imersa na perversidade humana, ela é um prato cheio para qualquer ator.
E o elenco, na maior parte dos momentos, parece perceber isso, deixando a plateia com um nó na garganta.
Quem demonstra grande domínio cênico em tão inebriante cena é o furacão chamado Nicole Cordery, que vive a mulher do casamento maduro, frustrada com sua vida sem amor e que tem prazer em ver a felicidade ruir como quem derruba dominós enfileirados.
Intensa até o último suspiro, a atriz surge praticamente possuída, repleta de uma verdade cênica desconcertante, fruto, evidente, de farto talento acrescido daquela gana típica de atrizes que agarram seus papéis com unhas e dentes, doa a quem doer.
Eduardo Martini, na pele de seu marido, brinda o público paulistano com algo distinto do que estamos acostumados a vê-lo. Ao fazer um macho alfa dominante cinquentão do tipo escroto, o grande nome do humor transfere seu talento ao drama e passeia por novas nuances, obviamente fruto da experiência de palco.
No time jovem, o destaque fica por conta de Luccas Papp, cujo surpreendente personagem ganha cena no desenrolar da história. O ator demonstra minucioso trabalho de pesquisa, tornando seu papel crível em todas as suas camadas de abusos sofridos antes e durante a cena.
Diante dessa entourage, cabe ao casal mais jovem fazer o contraponto. Larissa Ferrara e Mateus Monteiro prendem a atenção do espectador, mas teria sido mais interessante, pelo menos na opinião deste crítico, vê-los em um registro mais naturalista e, logo, mais interessante ao drama, o que deixaria seus personagens ainda mais potentes e afugentaria o histrionismo.
Contudo, é evidente a entrega desmedida de ambos atores aos pesados sentimentos que precisam deixar-se atravessar.
Afinal, “Nunca Fomos Tão Felizes” é um tipo de peça que nos faz duvidar que a bondade humana seja possível, por mais que, em tempos tão assustadores e tristes quanto os atuais, busquemos incessantemente por amor, nossa única forma de sobrevivência.