O ator Ivam Cabral fala sobre como foi encenar a peça “Mississipi”, do Satyros, no mesmo palco e no mesmo dia em que o diretor teatral Antunes Filho (1929-2019) foi velado no Teatro Anchieta do Sesc Consolação.
Por Ivam Cabral*
Não foi fácil apresentar “Mississipi” ontem, no Teatro Anchieta. Poucas horas antes da sessão, o mesmo palco tinha abrigado o velório de nosso bardo, Antunes Filho. Quis o destino que estivéssemos em cartaz em seu teatro neste momento tão difícil.
A questão mais delicada, no entanto, era saber se apresentaríamos ou não o espetáculo. Se por um lado seria um ato de homenagem e até de pesar; do outro, a sensação de que um silêncio poderia significar muita coisa. Enfim, juntamente com o Sesc – e depois de falar com Danilo Miranda, um dos diretores da instituição –, resolvemos abrir as cortinas do teatro.
Pensamos, então, que teríamos que fazer uma homenagem ao Antunes. Foi a Marici Salomão quem sugeriu.
— Por que não no meio do espetáculo?
Queríamos fincar e atravessar nossas biografias na biografia do mestre. Sabíamos que era um caminho sem volta e que, a partir dali, não seríamos mais os mesmos. E assim o fizemos.
Curioso é que nas coxias do teatro ainda estavam os paramentos do velório (cruzes e os suportes da urna). Nada tétrico, porém. Já estamos acostumados. Os da Phedra estão conosco até hoje. A funerária nunca buscou e acabamos usando o material em cenários de várias peças nossas, até hoje.
Então foi assim. Em uma cena que que trazemos a primavera (a esperança, o recomeço, o renascimento) para dentro da ação da peça, todo o elenco do espetáculo entra em cena (somos 14!) e a minha personagem anuncia:
— Neste momento do espetáculo, a personagem pede licença aos espectadores presentes e passa a palavra ao ao seu criador.
Então, é minha vez de falar.
— Eu me chamo Ivam Cabral e, ao lado de Rodolfo García Vázquez, criei esta Cia. de Teatro Os Satyros.
E sigo, no improviso, falando do que Antunes significou para nós. Lá no início, fim dos anos 1980, era a produção do Grupo Macunaíma que inspirava os grupos de teatro pelo Brasil. Foi ali que surgiram nomes importantes da cena, como Ulysses Cruz, com seu “Velhos Marinheiros”, e que fundaria, neste mesmo período, seu Boi Voador ; ou de Jayme Compri, de Gabriel Vilela, de Beth Lopes…
Falo também da importância de Antunes na estruturação da SP Escola de Teatro. Lá no início, em 2009, Antunes participou como conselheiro do projeto e esteve conosco em todos os nossos grandes momentos, tendo sido professor convidado, em várias ocasiões.
Mas queremos falar, na verdade, da eternidade. Para isso, lembramos de um poema de Cecília Meireles, de 1927:
“Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.”
Ao final, e antes que “se faça tarde de tristezas”, convidamos o público a cantar conosco “Manhãs de Setembro”, a canção de Vanusa e Mario Campanha que em seu refrão diz:
”Eu quero sair
Eu quero cantar
Eu quero ensinar
O vizinho a cantar”
Terminamos com um grande “Viva, Antunes” e uma salva de palmas. E “Mississipi” segue normalmente. Foi bonito.
— Na foto, de Leo Franco/AgNews – Blog do Arcanjo , artistas se reúnem em volta do caixão de Antunes Filho no palco do Teatro Anchieta do Sesc Consolação em SP.