Crítica: Soro da verdade de Cazuza fica atualíssimo em musical imperdível
“Censura nunca mais”. O emblemática frase do ator Marcelo Várzea já após os aplausos do musical “Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz”, neste sábado (3), no Teatro Porto Seguro, em São Paulo, mostra que o soro da verdade do poeta do rock continua valendo como nunca; mesmo que Cazuza, em vida, tenha dito que não queria ser porta-voz de nada, ao mesmo tempo em que dizia ao país o atualíssimo verso: “A tua piscina está cheia de ratos, tuas ideias não correspondem aos fatos”.
Nos aplausos, o elenco canta outros versos icônicos, os de “Brasil”, cujo refrão diz “Brasil, mostra a tua cara”, enquanto que o protagonista — posto dividido entre os atores Osmar Silveira e Bruno Narchi, este último visto por este crítico em performance repleta de entrega ao personagem — retorna ao palco enrolado na bandeira pátria.
Dá gosto de ver a bandeira, tão usurpada nos últimos tempos, ser enrolada no corpo de Cazuza, figura completamente confrontante aos nacionalistas retóricos.
A mesma bandeira na qual Cazuza chegou a cuspir, para demonstrar seu desagravo diante do país que se recusava – e se recusa até hoje – a mostrar sua verdadeira cara, travestindo-se de um ufanismo barato, quando no fundo “a burguesia fede” em sua sede de dinheiro e poder enquanto aniquila a poesia.
Cazuza no contexto contemporâneo é ainda mais atual do que na década de 1980 ou quando da estreia deste musical, seis anos atrás, época em que foi protagonizado por Emilio Dantas. Hoje, este espetáculo é mais forte e mais rock’n’roll — gênero musical que perdeu os holofotes em tempos tão adestrados.
Na plateia de “Cazuza” fica a curiosidade do que diria o poeta sobre os dias de hoje, caso aqui entre nós estivesse vivo. Certamente, seria artista não quisto pelas altas esferas do poder.
O musical “Cazuza” desconstrói de forma hábil a noção tradicional de “família de bem”, mostrando que, naquela família repleta de amor — formada por Lucinha Araújo (Susana Ribeiro, em composição sutil e cativante), João Araújo (Marcelo Várzea, que reconstrói habilmente a figura protetora e exigente daquele pai) e Cazuza —, havia amor de sobra, mesmo que essa família não se encaixasse em padrões de hipocrisia.
A entrega desmedida daqueles pais àquele filho de sexualidade livre e atitude contestadora é inegável, sobretudo quando se tornam o alicerce fundamental para Cazuza diante das agruras da Aids, doença ainda cercada de forte preconceito quando ele recebeu o diagnóstico. A coragem de Cazuza em dizer ao mundo sua verdade é exemplo até hoje de coerência artística e de hombridade que arrepiam qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade.
Apesar de certas concessões ao grande público — como ocorreu no filme de 2004 de Sandra Werneck e Walter Carvalho — para tornar mais palatável a vida rock’n’roll de Cazuza, o diretor João Fonseca mantém neste espetáculo sua alma e sua irreverência, presente na dramaturgia de Aloísio de Abreu.
A figura que reforça o Cazuza real, para além do filho idealizado e rememorado por sua mãe, Lucinha, autora da biografia na qual se baseia qualquer obra sobre o artista, é o inesquecível jornalista e produtor musical Ezequiel Neves, o Zeca, espécie de quarto elemento da família nada convencional.
O fiel escudeiro de Cazuza surge em carismática atuação de André Dias, o destaque entre o time de personagens coadjuvantes. Este crítico conheceu e conviveu com Zeca e pode afirmar que, mesmo diante da teatralidade exacerbada, ele está bem representado naquele palco na pele deste ator.
O elenco completo é formado por Osmar Silveira, Susana Ribeiro, Marcelo Vázea, Fabiano Medeiros, Carolina Dezani, Carlos Leça, Igor Miranda, Dezo Mota, André Viéri, Fabiana Tolentino, Philipe Carneiro, Bruno Narchi, Oscar Fabião, Matheus Paiva e Pamella Machado.
“Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz, o Musical”, já há seis anos em cartaz, nos faz relembrar, com suas letras desconcertantes, que rumar como vaca ao matadouro nunca foi seu estilo. Afinal, como ele mesmo cantou: “Mas se você achar que eu estou derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados. Porque o tempo não para”.
Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz, O Musical
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Avaliação: Muito bom ✪✪✪✪
Quando: Sexta e Sábado às 21h; domingo às 19h. No dia 10/8 sessão extra às 17h. 165 min com 15 min de intervalo. Até 25/8/2019.
Onde: Teatro Porto Seguro (al. Barão de Piracicaba, 740, Campos Elísios, tel. 11 3226-7300).
Quanto: R$ 75 a R$ 150 (em valores de inteira).
Classificação etária: 14 anos