O conturbado Brasil de hoje inspirou a comédia “Mãos Limpas”, novo texto teatral de Juca de Oliveira que faz uma crítica ferina social e política aos tempos atuais. O espetáculo estreou no último fim de semana no Teatro Renaissance, em São Paulo. A peça fica em cartaz até 22 de dezembro sexta e sábado, 21h, e domingo, 18h, protagonizado pelo próprio autor ao lado de um velho colega, Fulvio Stefanini, ambos nomes de trajetória respeitada nas artes cênicas brasileira. Sob direção de Léo Stefanini, filho de Fulvio, ainda estão no elenco os atores Taumaturgo Ferreira, Bruna Miglioranza, Claudia Mello e Nilton Bicudo.
Nesta entrevista exclusiva a Miguel Arcanjo no UOL, Juca de Oliveira revela que sua indignação com nossos tempos atuais o levou a escrever – e reescrever – várias vezes a obra. Ele ainda comenta os recentes ataques a Fernanda Montenegro, além de dar sua opinião sobre a Lei Federal de Incentivo à Cultura. Sobre a volta da censura, ele dá a seguinte declaração: “Como ator profissional há mais de 60 anos sou pela total liberdade de expressão e absolutamente contra todo e qualquer tipo de censura a produtos culturais”. O artista contratado da Globo ainda revela o porquê de seguir fazendo teatro aos 84 anos.
Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado — De onde veio a inspiração para escrever a peça “Mãos Limpas”?
Juca de Oliveira — Escrevo sempre quando não suporto mais ficar calado sobre coisas que me apaixonam ou me indignam. Estamos vivendo um momento de crise, posições políticas radicais, conflitos, críticas exacerbadas sobre tudo e sobre todos. É impossível ficar indiferente. Voltei ao computador e escrevi “Mãos Limpas”, uma comédia que fala do nosso tempo.
Miguel Arcanjo Prado — Como foi o processo de escrita?
Juca de Oliveira — O processo foi relativamente longo em virtude das muitas transformações políticas que se sucedem ultimamente. Há bastante tempo, não temos um período prolongado de paz e tranquilidade social. As posições políticas da maioria dos envolvidos mudam radicalmente, às vezes de um dia para outro. E você tem que ir adaptando o texto da peça, refazendo a escrita para manter a lógica. Você se baseia em algum político como modelo de virtude para o seu personagem e de repente ele se torna um vilão, corrupto, processado, preso. Você tem que jogar páginas e páginas no lixo e recomeçar tudo de novo. E rezar para que o escolhido continue íntegro. Mas é uma experiência maravilhosa.
Miguel Arcanjo Prado — O que você acha da proibição de certos temas em produtos culturais por parte de órgãos do governo? Acha que a censura está voltando ao Brasil?
Juca de Oliveira — Como ator profissional há mais de 60 anos sou pela total liberdade de expressão e absolutamente contra todo e qualquer tipo de censura a produtos culturais.
Miguel Arcanjo Prado — Como você viu o fato de a atriz Fernanda Montenegro ter sido atacada nas redes sociais por um membro do governo federal?
Juca de Oliveira — Como todos nós, amo Fernanda Montenegro, uma atriz genial e símbolo da nossa cultura. Acho inconcebível tentar desrespeitá-la.
Miguel Arcanjo Prado — O que as novas gerações do teatro deveriam aprender com sua geração?
Juca de Oliveira — Acredito que cada geração tem o seu aprendizado específico. As gerações passadas contêm um histórico que deve ser examinado como eventual fonte de conhecimento. Quanto mais levarmos em conta o passado mais habilitados estaremos para enfrentar os problemas do nosso presente e futuro.
Miguel Arcanjo Prado — Qual o maior desafio que se impõe sobre o teatro neste momento?
Juca de Oliveira — O maior desafio é recuperarmos o teatro como ele existia antes do advento da Lei Rouanet, que apesar de ter sido criada por razões louváveis, acabou se transformando num sério problema para o nosso trabalho profissional. Antes da Lei, fazíamos teatro de terça a domingo, duas sessões aos sábados e duas sessões aos domingos. O objetivo era ficar o maior tempo possível em cartaz, um, dois, três anos ou mais, pois a nossa sobrevivência vinha da bilheteria e não da renúncia fiscal de impostos para a saúde, educação ou segurança. Com o advento da Lei passamos a fazer espetáculos cujo tempo em cartaz era de somente um mês e meio, dois meses; e apenas dois dias por semana, três no máximo. E sem bilheteria, pois os ingressos eram praticamente gratuitos, eventualmente distribuídos ao patrocinador, ou vendidos a preços baixíssimos para justificar a subvenção da Lei. Como o autor teatral em todo mundo vive de um percentual da bilheteria, quase desapareceram os autores brasileiros. O maior desafio que se impõe ao teatro neste momento é voltarmos a fazer espetáculos com paixão, seis dias por semana em longas temporadas, para readquirirmos nossa fonte de sobrevivência e a nossa independência ideológica na escolha do nosso repertório.
Miguel Arcanjo Prado — Acha que a classe teatral e artística precisa ser mais unida no Brasil? Por quê?
Juca de Oliveira — A classe teatral, ao contrário do que se possa supor, é profundamente unida. Qual a origem dessa união? Os atores na antiguidade foram considerados marginais e acabaram sendo expulsos do altar, das igrejas e das cidades, encontrando-se nas encruzilhadas com marginais, ladrões, prostitutas e homossexuais. Por essa razão, até recentemente, havia na sociedade, aqui mesmo no Brasil, um certo preconceito com o ator de teatro. Mas daquele provisório estágio marginal nasceu a mais absoluta solidariedade entre os atores, um modelo de sólido, compacto e indestrutível afeto. Portanto a autêntica classe teatral no Brasil é, sem dúvida alguma, unida.
Miguel Arcanjo Prado — Como está sendo reencontrar o Fulvio no palco após tanto tempo?
Juca de Oliveira — Fulvio é um grande amigo, colega e excepcional ator. Já trabalhamos juntos no teatro e na televisão várias vezes. “Meno Male” e “Caixa Dois”, por exemplo, foram duas peças minhas de enorme sucesso, graças às interpretações desse brilhante ator. Está sendo um ótimo reencontro!
Miguel Arcanjo Prado — E o restante do elenco, como é trabalhar com essa turma?
Juca de Oliveira — Bom, quero começar com o Taumaturgo Ferreira, um dos maiores atores do cinema, teatro e televisão deste país. Sou enorme admirador dele, desde que trabalhamos juntos na minha peça “Motel Paradiso”, por cujo sucesso ele foi um dos responsáveis. É um orgulho tê-lo no elenco. Claudia Mello é uma comediante absolutamente fora de série e contar com ela em “Mãos Limpas” é uma enorme alegria. Quando trabalhou conosco em “Caixa Dois”, em 1997, a crítica enfatizou o fato de ela ter roubado a cena. Maravilhosa. Nilton Bicudo, é a primeira vez que tenho a honra de trabalhar com ele, apesar de admirá-lo como grande ator. Ele faz um brilhante advogado. Sempre aprendo alguma coisa com nosso querido Niltinho. Seja, bem-vindo! Bruna Miglioranza foi uma enorme surpresa! Quando fez uma leitura inicial de algumas cenas com Fulvio para integrar o elenco de “Mãos Limpas”, nós, que assistíamos da plateia, tivemos a certeza de que estávamos diante de uma grande atriz! Jovem, talentosíssima, linda, ainda vai dar muito o que falar. Graças a Deus está conosco!
Miguel Arcanjo Prado — Como é o Léo Stefanini como diretor?
Juca de Oliveira — Léo é um diretor de muito talento. Tinha constatado isso quando vi a minha peça “As Atrizes” dirigida por ele. Foi um encontro maravilhoso e imediatamente o convidei pra dirigir “Mãos Limpas”. Foi a melhor escolha possível. Estou encantado, estamos todos encantados com o nosso diretor Léo Stefanini.
Miguel Arcanjo Prado — A TV aberta também vive momento de crise, com atores não mais tendo grandes contratos. Como avalia este momento?
Juca de Oliveira — Não acredito que a TV aberta esteja passando por um momento de crise. O mundo é que passa por um momento de transição. As inovações da tecnologia levam a uma acelerada transformação digital dos meios de comunicação e, claro, à necessidade de novas adaptações. É apenas uma questão de adaptação.
Miguel Arcanjo Prado — Estamos com muitos atores com mais de 80 anos no palco: isso rejuvenesce vocês?
Juca de Oliveira — A primeira condição para você se tornar um ator é a absoluta inexistência de preconceito, de ciúme, de egoísmo e de inveja. Porque o ator tem de representar qualquer tipo de personagem, de Hitler a Jesus Cristo. Sua alma tem que estar aberta e predisposta a receber e viver no palco a personagem. Isso seria impossível a um preconceituoso. Essa predisposição a aceitar o ser humano na sua diversidade, com certeza, rejuvenesce. É só consultar a existência de atores idosos representando naturalmente aqui e em todo o mundo, acima dos 90 anos.
Miguel Arcanjo Prado — Por que você aos 84 anos ainda faz teatro?
Juca de Oliveira — A última peça em que atuei foi “Rei Lear”, de Shakespeare, em 2016/2017. Em seguida, fiz a telenovela “O Outro lado do Paraiso” do Walcyr Carrasco (2017/2018) na Globo, onde sou contratado. No tempo de espera para um próximo trabalho, resolvi escrever uma nova peça. E parti para “Mãos Limpas”. E imediatamente descobri por que ainda faço teatro aos 84 anos, tendo começado como profissional em 1960, em “A Semente”, de Gianfrancesco Guarnieri. É que você renasce a cada espetáculo. É uma nova vida, é um recomeço. O Teatro nasceu da religiosidade e tem como função social melhorar o homem, torná-lo mais afetivo, mais generoso e, sobretudo, mais solidário. A era digital nos brindou com fascinantes redes sociais espalhadas pelo mundo, mas nos separou e nos deixou cada vez mais sozinhos com nossos celulares. O teatro, ao contrário, está voltando a nos juntar, a restabelecer o calor humano da vida em sociedade, como se voltássemos a nos encontrar nos templos ou nas reuniões de família, nos almoços de domingo que já não existem mais. E eu quero continuar participando dessa maravilha.
Mãos Limpas
Teatro Renaissance (al. Santos, 2233, metrô Consolação, São Paulo, tel. 11 3069-2286). Sexta e sábado, 21h, domingo, 18h. R$ 50 a R$ 120. 80 min. 14 anos. Até 22/12/2019.