Neste 2019 em que seu grupo teatral, Os Satyros, completou 30 anos de existência, o ator, dramaturgo e diretor Ivam Cabral vive um ano repleto de realizações. No momento, ele está em Mindelo, na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, onde apresenta seu solo “Todos Os Sonhos do Mundo” no 25º Mindelact, principal festival de teatro da África Ocidental. A sessão é nesta sexta (8), às 19h, na Nave Principal do Palco Alaim.
Depois, o artista retorna a São Paulo, para estrear na capital paulista a peça que já passou com sucesso pelo Festival de Teatro de Curitiba. O espetáculo aporta na praça Roosevelt, sede da Cia. de Teatro Os Satyros, fundada por Ivam ao lado de Rodolfo García Vázquez 30 anos atrás — local que foi revitalizado pelo teatro que eles fazem e hoje é um efervescente point cultural. O espetáculo entra em temporada no dia 20 de novembro, ficando de quarta a sábado, 21h, e domingo, 19h, até 15 de dezembro.
Além disso, Ivam virou nome de teatro em Registro (SP) na última semana e ainda passou boa parte do ano em cartaz como protagonista de “Mississipi”, obra que estreou em Curitiba, depois passou pelo Teatro Anchieta do Sesc Consolação, pelo Espaço dos Satyros e teve sessão consagradora no Theatro Municipal de São Paulo. Agora, se prepara para comandar a Satyrianas, gigantesco festival cultural e artístico que será realizado entre 14 e 17 de novembro. Isso tudo sem deixar o comando da SP Escola de Teatro.
Pouco antes de embarcar em Guarulhos rumo a Cabo Verde, Ivam conversou com exclusividade com Miguel Arcanjo nesta Entrevista de Quinta. Falou de coração aberto. Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado — Ivam, por que você criou este solo, “Todos os Sonhos do Mundo”?
Ivam Cabral — No finalzinho dos anos 1990, fui diagnosticado bipolar, em um processo de depressão profunda. Nos primeiros tempos, eu neguei completamente o diagnóstico e demorei alguns bons anos para, primeiro, aceitar e, depois, falar a respeito.
Miguel Arcanjo Prado — Na época não contou para ninguém?
Ivam Cabral — Nem pessoas muito próximas e íntimas me acompanharam neste trajeto. Então, lá por 2015, mais ou menos – e depois de falar com o meu psiquiatra –, eu assumi a minha condição num post do Facebook. Claro que ensaiei muitas vezes, temi, me arrependi, tudo isso que acontece com as pessoas quando estão diante de uma condição tão complicada como esta. Neste período, estava lendo muita poesia e frequentando alguns saraus de literatura. Comecei a declamar poemas, sempre contando algum fato da minha vida que se relacionasse com esses poetas. Daí, comecei a ser chamado pra fazer isso profissionalmente, aqui e acolá. Quando vi, a peça tinha nascido. Mas entre os saraus e a estreia da peça, que aconteceu em abril no Festival de Curitiba, eu tive o Rodolfo García Vázquez, que foi me dirigindo e limpando excessos, conduzindo o processo de maneira mais linear e apolínea possíveis.
Miguel Arcanjo Prado — Qual reação do público mais lhe impressionou fazendo esta peça?
Ivam Cabral — Acontece muita coisa durante essas apresentações. Já tive gente chorando muito, muito mesmo, durante as sessões. Teve uma apresentação que os choros vinham como sinfonia, porque surgiam de várias direções da plateia. E existem as pessoas que me confidenciaram que haviam tentado suicídio na noite anterior. Outra que me disse que se suicidaria um dia, não sabia quando. Tudo isso em cena. Como resolver a vida de pessoas em 60 minutos? Em uma apresentação no litoral do estado, uma mulher assumiu pra plateia do teatro que era espancada e estuprada pelo marido. A sessão terminou com um carro de polícia na porta do teatro porque a mulher pedia socorro ao dizer que nunca tinha relatado nada daquilo a ninguém e que agora os moradores da pequenina cidade onde vivia sabiam de tudo o que acontecia na sua vida. E tudo isso vem como pedido de socorro, sabe?
Miguel Arcanjo Prado — Forte demais.
Ivam Cabral — É.
Miguel Arcanjo Prado — Por que você demorou a estrear seu solo em São Paulo?
Ivam Cabral — Medo, muito medo. Viajando parecia que não tinha muito compromisso com o que estava dizendo a eles. E foram apresentações esporádicas – embora muitas, fiz mais de 60 sessões –, no máximo duas vezes em cada cidade. Agora, encarar um público de temporada é muito diferente. Estarei no teatro de quarta a domingo. É muita responsabilidade também trazer um depoimento tão dolorido e que afeta tantas pessoas.
Miguel Arcanjo Prado — Neste mês, você virou nome de teatro, com a inauguração da Sala Ivam Cabral. Como foi receber essa homenagem?
Ivam Cabral — Há mais de um ano, o Fabiano Muniz e o Fernando Barbosa, do Grupo Caixa Preta, da cidade de Registro [interior de São Paulo], haviam me convidado para emprestar o meu nome à sala de espetáculos do espaço do grupo que seria inaugurado em algum momento. Confesso que não pensei muito, como era uma coisa que aconteceria no futuro, deixei passar. Vivendo tudo o que vivi a partir deste dia, penso que, se voltasse ao tempo com a memória de tudo o que, enfim, acabou acontecendo, eu acho que declinaria ao convite. Por uma razão bem simples: por que eu? É muito, muito sagrado o que os meninos fizeram e eu tenho certeza, absoluta mesmo, e posso afirmar categoricamente: eu não mereço. Por trás de tudo o que vi acontecer na semana passada, quando o espaço foi inaugurado, acho que eu deveria ter tido a nobreza de não ter aceitado. O trabalho dos meninos é sensacional e o que eles construíram ali é sagrado demais. Eu sou humano, com zilhões de defeitos. Imagina só, nunca mais na vida poder errar, pisar na bola, fazer essas coisas que a gente faz a toda hora? Passo a ser responsável por eles e não adianta virem me convencer do contrário. Inclusive, no dia seguinte ao da inauguração do teatro, pedi que eles criassem um grupo no WhatsApp com todos os participantes da companhia (além do Fabiano e do Fernando, que são irmãos gêmeos, o coletivo é composto por Emerson Trankas, Herick Villeiro, Izabelle Ferreira, João Fonseca e Paloma Medeiros). Mesmo assumindo o papel de padrinho, foi um pedido de socorro, na verdade. Era como se, a partir dali, já que as nossas biografias haviam se fundido, eu precisasse deles para me ajudar a seguir nesse mundão de Deus. É muito sério tudo isso. Esse pessoal aí deu um novo sentido à minha vida.
Miguel Arcanjo Prado — O que você pode adiantar da Satyrianas 2019?
Ivam Cabral — Duas novidades incríveis. Dois novos textos meu e do Rodolfo ganharão leitura no festival. “Anna, você pode ficar”, cujo título original e pra valer mesmo é “Anna, du Kan Väl Stanna”, porque escrevemos especialmente para duas atrizes suecas, Ulrika Malmgren e Katta Pålsson, e que estão em São Paulo sendo dirigidas pelo Rodolfo neste momento. A peça terá leitura em inglês e estreará em sueco, em Estocolmo, no ano que vem. Mas para que o público brasileiro também possa entender o texto, preparamos uma surpresa. A atriz portuguesa Luisa Pinto, que produzirá o texto em Portugal também no ano que vem, e a brasileira Patricia Pillar farão a leitura em português. O outro projeto bacana é o texto “Uma Peça Para Salvar o Mundo”, onde não teremos a participação de um único ator em cena. Desta vez o público é nosso grande protagonista.
Miguel Arcanjo Prado — Neste ano de celebração dos 30 anos do Satyros, eu te pergunto: o que lhe deu mais prazer?
Ivam Cabral — Nossa, foram tantas, mas tantas emoções. Ganhamos prêmios, fomos homenageados na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa, tivemos uma edição do ótimo “Persona em Foco”, da TV Cultura, inteirinho pra gente. Lançamos dois livros novos e até teatro virei. Mas acho que a coisa mais linda mesmo foi ter chegado até aqui. Vencemos, sabe? Trinta anos é muita idade!
Miguel Arcanjo Prado — Falar de 30 anos do Satyros é falar de você e do Rodolfo. O que o Rodolfo García Vázquez representa para você?
Ivam Cabral — Rodolfo é meu amor, minha vida inteirinha. Responsável por me colocar na corda bamba da vida. Eu sou o oposto dele. Pra mim a vida é regulada, calculada. Pra ele, não. Tudo acontece num sopro. Rodolfo, que é uma das pessoas mais inteligentes que conheço (só pra você ter uma pequenina ideia, ele fala alemão, inglês, francês, espanhol, italiano, e ainda arranha um monte de outras línguas), me faz produzir, perder o prumo, a razão, as certezas. Não tenho nenhuma dúvida que não seria nada sem a força do Rodolfo. E é o maior diretor do teatro brasileiro também, né?
Miguel Arcanjo Prado — O que o Ivam de hoje ainda tem do Ivam menino de Ribeirão Claro no interior do Paraná?
Ivam Cabral — Toda vez que passo em frente a uma igreja faço questão de fazer o nome do pai. Faço isso porque não quero esquecer de mim. Nenhuma dificuldade com isso, no entanto. Porque amo a minha origem de filho do Zé Cabral e da dona Eunice, ele pedreiro e analfabeto, ela apaixonada por livros. Amo ser o quinto dos seis filhos dos meus pais. E amo alucinadamente minha pequenina Ribeirão Claro. Que, aliás, nunca falo muito sobre isso, mas é uma cidadezinha muito, muito bonita.