Crítica: A Cor Púrpura é musical imperdível com elenco sensacional
A Cor Púpura – O Musical é um dos melhores espetáculos do gênero já montados no Brasil. Sob direção geral de Tadeu Aguiar, com assistência de Flavia Rinaldi, a superprodução traz um elenco sensacional que oferece ao público o melhor grupo de cantores do teatro musical dos últimos tempos. Perto dessas retumbantes vozes, muitas das que soam nos palcos paulistanos ultimamente parecem fiapos amadores. As vozes que ecoam no palco deixam o público arrepiado da primeira à última nota. Por isso, e mais alguns motivos que esta crítica vai dizer brevemente, trata-se de um espetáculo imperdível. E o público paulistano precisa correr: afinal, o musical encerra temporada na cidade no próximo dia 16, pois já tem retorno marcado ao Rio, onde abocanhou os principais prêmios.
A obra traz cuidadosa e elegante versão brasileira de Artur Xexéo para o roteiro de Marsha Norman, além de música e letras de Branda Russell, Allee Willis e Stephen Bray, tudo inspirado pelo livro de Alice Walker e o filme de 1985.
A montagem é, obviamente, fruto da luta negra por representatividade nos palcos tanto nos EUA, onde a produção de Oprah Winfrey foi aclamada e abocanhou dez indicações ao Tony, o Oscar do teatro, quanto aqui no Brasil, onde a representatividade nos palcos vem crescendo nos últimos tempos, com o fim de elencos com hegemonia branca. E o público vem aplaudindo esta mudança, com espetáculos de temática negra fazendo enorme sucesso de bilheteria. Prova de que produções que dialoguem com a diversidade étnica de nosso povo são necessárias, bem como revelar talentos até então escondidos na última fila dos coros.
Em A Cor Púrpura – O Musical, o impressionante elenco é todo formado por artistas negros altamente capazes. A começar de sua protagonista. Atriz que sempre mostrou sua potência mesmo fazendo diminutas aparições em coros de importantes musicais, como em A Pequena Sereia, Letícia Soares dessa vez é valorizada e tem a grande chance de protagonizar uma superprodução — ela já havia mostrado potência também no musical independente Se Essa Lua Fosse Minha, no ano passado. E Letícia o faz maravilhosamente bem, construindo sua sofrida protagonista Celie — papel que rendeu indicação ao Oscar a Whoopi Goldberg no filme de 1985 — com múltiplas camadas. Isso faz com que o público entre na história daquela mulher pelo coração, conseguindo quebrar todas as barreiras de possíveis olhares preconceituosos para com os desdobramentos de sua personagem. Não à toa, a protagonista foi aplaudida de pé em cena aberta na sessão vista por este crítico por um público extasiado. Com A Cor Púrpura, Letícia Soares entra para o time das grandes estrelas da história do teatro musical brasileiro, ao lado de nomes como Bibi Ferreira, Marília Pêra, Claudia Raia, Kiara Sasso, Amanda Acosta, Fabi Bang e Larissa Luz.
E o talento e o carisma cênico presentes em Letícia Soares se repetem no time coadjuvante: Lilian Valeska, como a valente Sofia, e Analu Pimenta, como a divertida Gralha, roubam a cena a cada entrada e já estão no páreo para os prêmios de melhor atriz coadjuvante desta temporada, páreo este dificílimo por sinal. Flavia Santana também evolui a cada cena como a empoderada Shug Avary, mulher independente que conquista o amor de Celie — e o musical acerta ao mostrar com naturalidade o romance lésbico.
No time masculino, Sergio Menezes impressiona como o marido opressor da protagonista, demonstrando maturidade em sua composição, além de uma linda voz. Alan Rocha, como o bobalhão Harpo, vai por um caminho clownesco, destoando em certa medida do conjunto mais realista, mas ao mesmo tempo servindo de alívio cômico a uma história dramática tão pesada. É preciso entender que o público precisa rir de vez em quando para acompanhar o desenrolar dos 180 minutos de uma dura história que inclui incesto, estupro, violência doméstica e outros horrores.
No coro, é preciso destacar o trio de vizinhas fofoqueiras formado por Claudia Noemi, Erika Affonso e Suzana Santana, todas com vozes magníficas e em conjunto coeso e afinado — as caras e bocas de Suzana Santana são impagáveis e divertem os espectadores a cada entrada ou arroubo coreográfico.
Ainda precisam ser nomeados Ester Freitas, sutil, mas tocante, como a irmã da protagonista, Nettie; o experiente Jorge Maya, como o sisudo patriarca da família; e Nadjane Pierre, com sua voz aveludada de estremecer o mundo. Completam o elenco vigoroso Thór Junior, Gabriel Vicente (cheio de charme e ginga na pele de Bobby), Caio Giovani, Leandro Vieira e Renato Caetano.
A coreografia de Sueli Guerra com assistência de Olívia Vivone é simplória e sem muitos arroubos, mas isso acaba por valorizar o caráter dramático da história. Também simples, mas altamente funcional, a cenografia de Natália Lana, com auxílio de Gisele Batalha, dialoga de forma farta com a iluminação de Rogério Wiltgen, com assistência de Sergio Martins, crescendo em sombras que são repletas de significados.
A direção musical de Tony Lucchesi acerta ao apostar no que a superprodução tem de melhor: as vozes de seus artistas, valorizadas pelo desenho de som de Gabriel D’Ânglo com assistência de Felipe Malta. Ney Madeira e Dani Vidal com assistência de Bruna Nattrodt, por sua vez, criam figurinos de época elegantes e que ajudam o público a mergulhar no tempo. Enquanto que J. Faria não se descuida na coordenação cenotécnica para que tudo flua com naturalidade.
Assim como em “Bibi, Uma Vida em Musical”, Tadeu Aguiar acerta mais uma vez em “A Cor Púrpura, O Musical”, demonstrando segurança no gênero e não abrindo mão do talento de seus artistas no palco. Afinal, o bom teatro musical se faz assim, de verdade, com artistas verdadeiramente entregues e dotados de capacidade técnica para oferecer ao público o melhor. Não adianta confiar em rostos conhecidos da TV, mas que são um desastre quando abrem a boca, como temos visto em muitos grandes musicais por aí, que só servem para deixar o público constrangido.
A Cor Púrpura dialoga de forma surpreendente com as questões de etnia e de gênero do Brasil de hoje, tornando essa história atual e uma alegoria do empoderamento feminino e negro contemporâneos. Mesmo focado na mulher negra, A Cor Púrpura revela a opressão pela qual passam todas as mulheres, gerando enorme identificação com essa parcela do público e também com os homens que já aprenderam que o machismo não dá mais para ser tolerado.
Ao descortinar um esplêndido elenco negro muitas vezes desvalorizado em outras produções, A Cor Púrpura escancara para quem costuma dizer que não há tantos atores negros talentosos para serem escalados que isso não passa de uma balela racista. A reconexão com a as raízes africanas, presente em uma das cenas e no arranjo musical, também é outro ponto forte. Independentemente da etnia, este musical revela alguns dos melhores talentos do teatro musical brasileiro, capazes de estrelar todos os tipos de produções — e não só as de temática negra. Se você quer testemunhar isso com seus próprios olhos e se embasbacar diante dessas vozes, corra para ver A Cor Púrpura – O Musical.
A Cor Púrpura – O Musical ★★★★★
Avaliação por Miguel Arcanjo Prado: Ótimo
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