Crítica: O Ovo de Ouro faz Holocausto nazista conversar com Brasil atual
Um dos maiores méritos do espetáculo O Ovo de Ouro, em cartaz no Teatro Porto Seguro, em São Paulo, é fazer o terror do Holocausto nazista ganhar nova dimensão ao conversar com o Brasil de hoje, país onde tornou-se comum o ódio às ditas minorias, referendado pela maior autoridade do país e seus asseclas. Mais do que nunca, é necessário que sejam recontadas no palco, na TV e no cinema as histórias de períodos tenebrosos da humanidade, aqueles que pisaram em cima dos direitos humanos e transformaram gente em coisa que poderia ser descartada, exterminada.
Por isso, nunca será demais que se fale na dramaturgia dos horrores do Holocausto, da escravização de pessoas negras, do extermínio indígena ou das torturas e assassinatos nos porões das recentes ditaduras no Brasil e na América Latina. É preciso falar à exaustão sobre tais períodos, para que os mesmos não sejam negados pelos novos agentes da história, sempre reescrita pelos últimos vencedores.
O texto de pretensões clássicas de Luccas Papp, jovem dramaturgo que vem chamando a atenção na cena paulistana por seu fôlego farto e a genuína paixão pelo teatro, toca em uma das mais delicadas temáticas da Segunda Guerra Mundial: o sonderkommando, ou comando especial. Trata-se de prisioneiros judeus que foram arregimentados pelos oficiais de Hitler para serem funcionários da indústria da morte de seus próprios irmãos (e até deles próprios) nos ignóbeis campos de concentração.
A direção de Ricardo Grasson, com assistência de Heitor Garcia, consegue instaurar o clima sufocante deste tenebroso período da história da humanidade, aliando-se ao texto para humanizar a figura do judeu que precisou auxiliar os algozes do seu povo, Dasco, interpretado pelo próprio autor Luccas Papp na fase jovem e por Sergio Mamberti já na maturidade do personagem, em constante angústia com o passado vivido.
Na construção desta atmosfera tétrica colaboram a precisa trilha de L.P. Daniel, a cenografia impessoal de Kleber Montanheiro, que ganha novos contornos ao contrastar com a luz de Wagner Freire, e ainda os figurinos precisos para a época retratada sob assinatura de Rosângela Ribeiro.
A construção dramatúrgica, com idas e vindas no tempo, faz com que o público descubra aos poucos os fios daquela história. Na visão deste crítico, talvez o texto cometa certo deslize ao afastar o público do mergulho realista já na reta final do espetáculo. Uma outra observação desde escriba: um leve corte na extensa duração do espetáculo, com excessivas reiterações, teria injetado dinamismo ao espetáculo.
Apesar de certa irregularidade, há evidente boa vontade e entrega no elenco. Por isso, as críticas que se seguem são construtivas e desejosas de real evolução dos intérpretes.
No time de atores, obviamente, quem mais se sobressai é Sergio Mamberti, não à toa um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro. O ator sabe dizer cada palavra com a nuance necessária, convencendo até o mais desconfiado espectador de que todas as suas emoções em cena são genuínas, sem contar com o farto carisma cênico que o faz conquistar um por um na plateia.
No time jovem, quem consegue chegar mais perto dessa naturalidade de Mamberti é Leonardo Miggiorin, que se sobressai no elenco como o amigo corajoso e altivo do protagonista, que não aceita sua desumanização pela máquina de extermínio nazista. Nas poucas e precisas cenas que tem, Miggiorin defende o personagem de modo convincente.
Dividindo com Mamberti o protagonista, Luccas Papp demonstra intensidade no mergulho no próprio texto, e a autoconfiança é uma qualidade importante a um ator/autor. Outro mérito é ter construído uma dramaturgia dramática clássica e densa, algo incomum aos autores de sua geração. Mas isso por si só não é motivo de espanto. Não custa lembrar que boas obras foram escrita por gente muito jovem — Jorge Amado, por exemplo, escreveu Capitães da Areia aos 25 anos, para ficar em um só exemplo. Não existe uma relação direta entre talento e idade.
Como ator, apesar da entrega desmedida, este crítico sentiu falta de ver Papp aproveitar a oportunidade de se espelhar em Mamberti, já que tem o mestre tão próximo e fazendo o mesmo personagem. Para se dar bem, bastava segui-lo, mas, é perceptível um distanciamento entre os dois intérpretes, que vão por caminhos diferentes na construção do mesmo personagem. E Mamberti deixa uma lição preciosa nesta peça que serve para todo o elenco: em um drama, a sutileza é a maior das dádivas para um intérprete.
Falando em sutileza, esta falta de modo geral à construção do vilão da história, o oficial nazista interpretado por Ando Camargo. Histriônica e mais latina que saxônica, a proposta do ator aposta nos decibéis e máscaras faciais, o que acaba distanciando seu personagem de um registro mais realista e frio, como costuma pedir tal tipo de personagem em um teatro dramático clássico, como se propõe a ser este espetáculo. O mínimo aí também teria surtido efeito bem mais impactante.
Rita Batata, por sua vez, na pele do amor do protagonista que sucumbe à carnificina nazista, ganha mais peso no jogo cênico com Luccas Papp, quando está na pele da jovem judia Judit — apesar do excesso de gritaria inconcebível em dois exauridos prisioneiros judeus em um campo de concentração. Se demonstra maior força no embate jovem, quando faz a jornalista que entrevista Dasco em sua velhice falta a Rita jogo cênico real com Mamberti, que está ali ao seu lado, completamente disponível. Mas, não é devidamente aproveitado pela atriz. Há uma postura corporal pomposa que não casa com uma jornalista realmente interessada em ouvir um relato tão genuíno e difícil, o de um judeu que teve de colaborar na morte de seus pares para sobreviver. E é preciso muita humanidade e acolhimento em um entrevistador para conseguir tal tipo de confissão, e isso falta na interpretação da atriz em tais cenas.
Em tempos tão difíceis para a cultura, o espetáculo O Ovo de Ouro merece nossos aplausos pela garra de uma montagem tão expressiva e que traz fôlego novo ao nosso teatro dramático. E demonstra sua importância, sobretudo, em sua temática, que assustadoramente torna-se mais forte do que nunca — sobretudo após o ex-secretário Nacional de Cultura do governo federal ter se inspirado no comunicador do nazismo para fazer um vídeo que provocou sua demissão do posto, após pressão da comunidade judaica.
A cada notícia ou declaração de poderosos que chegam em links em nossos celulares de forma desavisada, nos assustamos com os rumos da humanidade. Esta parece cada vez mais próxima de deixar eclodir outra vez o ovo da serpente. Reiterar o perigo deste horror nunca é demais, como o faz muito bem esta sagaz peça de Luccas Papp.
O Ovo de Ouro ★★★
Avaliação por Miguel Arcanjo Prado: Bom
Teatro Porto Seguro (al. Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos, tel. 11 3226-7300). R$ 50 e R$ 70. Até 1º/3/2020.
Compre seu ingresso para ver O Ovo de Ouro!