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Ricardo Cabral: Por que fazer teatro em quarentena?

A convite do Blog do Arcanjo, Ricardo Cabral, primeiro ator a estrear peça inédita durante quarentena, faz reflexão sobre a importância de seu ofício

Ricardo Cabral – Foto: Carolina Calcavecchia/Divulgação – Blog do @miguel.arcanjo

POR RICARDO CABRAL*

Há um denominador comum na fala de vários cientistas e pensadores que tenho escutado ao longo das últimas semanas: todos são categóricos em afirmar que o mundo, ao menos da forma como o conhecíamos até aqui, acabou. Num cenário otimista, os estudos mais consistentes indicam que devemos seguir vivendo em quarentenas intermitentes pelos próximos dois anos – até que uma vacina seja descoberta, testada, produzida e distribuída para 7 bilhões de pessoas.

Estamos em crise. E, no meio de uma das crises mais severas da humanidade, há espaço para teatro? Há espaço para fazer e pensar teatro em meio à mortandade generalizada que se anuncia num Brasil maculado pelas desigualdades e desgovernado por um vírus presidencial? Eu gostaria de apostar que sim.

Do grego krisis, crise indica ao mesmo tempo um processo de separação e de decisão. Em vez do fim do mundo, então, melhor seria dizer que estamos diante do fim de um mundo – um ponto de inflexão em que já não somos o que éramos e tampouco somos o que ainda vamos ser. O futuro está em disputa, aqui e agora, e talvez nunca tenhamos tido uma oportunidade tão fértil para revirar as estruturas do planeta.

É verdade, por outro lado, que podemos sair desse túnel num mundo ainda mais apocalíptico. O outro enquanto risco é a desculpa perfeita para um cenário de exceção em que se aprofundam os totalitarismos e a exploração sanguinolenta da Terra, seus rios e florestas, como já nos mostrou a História e o recente aumento do desmatamento amazônico durante a quarentena.

Aqueles que desejam sair dessa pandemia maximizando ainda mais seus lucros bilionários à custa da desumanização das vidas sabem muito bem disso. “Somente uma crise produz mudança verdadeira. Quando a crise acontece, as ações tomadas dependem das ideias à disposição. Esta é nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável.”

As palavras são de Milton Friedman, ícone do capitalismo neoliberal e guru do programa econômico que foi adotado à bala pelas economias latinas durante as ditaduras sangrentas que varreram o continente e deixaram cicatrizes profundas em nossas sociedades até hoje. Aliás, não por coincidência, Friedman foi um adorado professor de ninguém menos que Paulo Guedes, nosso desministro da Economia, durante sua passagem pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Neste exato momento, médicos, engenheiros, economistas, antropólogos, geógrafos, historiadores e lideranças indígenas e de diversos movimentos sociais estão se reunindo ao redor do planeta para estabelecer bases progressistas para uma agenda de ação, que possa guiar a refundação do mundo num cenário mais libertário. O neurocientista Sidarta Ribeiro aponta que a pressão evolutiva nos obriga a substituir a relação de escassez presa-predador pelo paradigma do amor. Aílton Krenak nos desafia a cair sem medo nesse abismo do fim, enquanto inventamos paraquedas coloridos.

Investigar o que possa ser um teatro quarentenado em meio a tudo isso significa apostar que o campo das artes da cena pode contribuir de forma estratégica para uma aproximação performativa a esse problema, de imaginar o futuro que queremos.

Afinal, imaginar – e também inventar, delirar, transformar e reaproveitar – é justamente aquilo que nós, artistas, melhor sabemos fazer. E talvez o que de melhor tenhamos a oferecer a esse mundo desgastado. “O teatro refaz o elo entre o que é e o que não é”, diz Artaud, em seus escritos sobre o teatro e a peste, “entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada.”

Ernst Bloch, filósofo alemão da metade do século passado diz que a esperança humana brota do inevitável sonho de uma vida melhor. Para Bloch, ninguém pode viver sem “velejar em sonhos” e por isso mesmo todos os dias imaginamos “no próprio mundo aquilo que ajuda o mundo”. Para ele, sonhar é um ato de coragem em direção ao futuro, que mobiliza nosso imaginário do que seja possível.

Nós, artistas da cena, passamos os últimos séculos experimentando tecnologias de imaginação e de trabalho colaborativo, sempre exercitando redes de solidariedade e de afeto que reconhecem e respeitam a diferença de cada um. O teatro sobreviveu a tudo. Houve teatro depois da carnificina nazista, depois do ciclone que destruiu Moçambique um ano atrás, e havia teatro mesmo em meio às incursões necropoliciais nas favelas e periferias brasileiras das últimas décadas. Por que não haverá teatro agora?

Investigar o que possa ser uma cena quarentenada não é uma elucubração gratuita nem uma fantasia romântica. Em vez disso, me parece, é ação urgente de imaginar aquilo que ainda não viemos a ser.

Diz Grace Passô, no programa de “Preto”, que o teatro é um lugar histórico de resistência e de pensamento do impossível. “Não o impossível como aquilo que desiste”, ela ressalva, mas “o impossível como potência do imaginário, do que inventa outra forma de ser.”

O teatro precisa viver.

*Ricardo Cabral é ator, diretor e dramaturgo, mestre em artes da cena pela UFRJ e cofundador do TEATRO CAMINHO. Está em cartaz em O FILHO DO PRESIDENTE, um espetáculo em live streaming dirigido por Natasha Corbelino, todas as sextas-feiras às 21h pelo Zoom. Acesse www.teatrocaminho.com ou @teatrocaminho e saiba como assistir o espetáculo. O artista escreveu este artigo a convite do Blog do Arcanjo.

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Ricardo Cabral – Foto: Carolina Calcavecchia/Divulgação – Blog do @miguel.arcanjo
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