Cenógrafo J. C. Serroni faz 70 anos: ‘O teatro há de nos manter vivos’
Um dos mais importantes e respeitados cenógrafos da história do teatro brasileiro, J. C. Serroni acaba de completar 70 anos de vida. Mesmo tendo feito aniversário em um dos períodos mais nebulosos do teatro nacional por conta da pandemia do novo coronavírus, ele não desanima. “O teatro há de nos manter vivos”, avisa o artista em entrevista exclusiva ao jornalista Miguel Arcanjo Prado publicada originalmente no site da SP Escola de Teatro, onde ele coordena os cursos de Cenografia e Figurino.
Durante o papo, o cenógrafo nascido em São José do Rio Preto em 9 de maio de 1950 e que trabalhou com os maiores ícones de nossas artes cênicas, relembra a infância no interior paulista, a vinda para São Paulo, os tempos na FAU-USP, seu estabelecimento no meio teatral, as passagens pelo Fundacen e pelo CPT (Centro de Pesquisa Teatral) de Antunes Filho, a criação do Espaço Cenográfico na virada do século e a fundação ao lado de Ivam Cabral e um time de artistas da SP Escola de Teatro há dez anos.
Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado – Como foi sua infância e adolescência em São José do Rio Preto?
J. C. Serroni – Minha infância e adolescência em São José do Rio Preto foi igual à de todas as crianças e adolescentes de cidade de interior. Livre pelas ruas, muito lúdica, praticando aquelas brincadeiras típicas de cidade interiorana. Rico Trico, Pega-pega, Mãe da Rua, Queimada, Mão na Mula etc. Andar por valas de rios, roubar laranja na fazenda próxima, nadar na represa etc. Mas, eu, particularmente adorava jogar futebol. Era todo dia no “gramadinho”, horas e horas. Minha mãe às vezes tinha que me buscar lá, já noite, pra fazer as lições da escola. Quase fui ser jogador de futebol. Joguei no juvenil do Juventus, depois no amador do América, que era o time oficial da cidade, e cheguei até a ser convidado para treinar no Santos, na época áurea do Pelé. Acabei não indo. Também brincava de circo e eu fazia números num pretenso trapézio, umas mágicas, eu e mais alguns amigos. Cobrávamos palitos de fósforo como ingressos. Já nos meus 12 a 13 anos tive uma experiência muito incrível com o circo. Na frente da minha casa montavam-se circos, num terreno que ocupava a quadra inteira. Dois que me lembro, Circo do Lambari e Circo do Bartholo. Mambembes ao extremo. Além de números circenses, eles tinham o circo teatro. Lá vi espetáculos memoráveis que sempre guardei na memória: O Hébrio, O Céu Uniu Dois Corações, Sansão e Dalila, Deus lhe Pague etc. Todos com ponto. Eu ia toda noite. Ganhava ingresso porque emprestava até móveis de casa escondido da minha mãe. Ajudei a costurar lona. Depois, eles entraram em maior decadência ainda e todos os números deram lugar a lutas livres como A Mulher Gorila versus Rebeca ou leilões de cavalos.
Miguel Arcanjo Prado – O circo foi quem abriu a porta para o teatro na sua vida?
J. C. Serroni – Nunca tinha entrado num teatro até meus 17 anos, por isso costumo dizer que sem saber, o circo estimularia minha aproximação com o teatro. Já no científico, que tinha naquela época biologia e desenho, fiz desenho. Tive a sorte de ter uma professora, dessas que não existem mais, a Dinorath do Vale, que me estimulou nas artes. Comecei a desenhar e a pintar e recebi prêmios em salões que ela organizava. Expus na praça em frente a catedral aos domingos de manhã, e até vendia alguns quadros. Virei pintor e até tive quadros comprados pelo Festival De Teatro da época, em que eram dados como prêmios aos grupos. Pintando, fui convidado pelo Vendramini a pintar uns telões para a peça “A Sagrada Família”, que ele montava. Pintei, sem nunca ter feito, cinco telões, cada um pra uma cena. Acabei fazendo os adereços e até entrando no coro da peça. Fui me envolvendo com o mundo do teatro e iniciei meu trajeto pelo teatro amador, mas sempre pela cenografia. Lá, fiz vários espetáculos. Um até censurado: “O Troco”, proibido pela censura, em 1970. Fiz lá A Muralha da China, Os Cegos, A Megera Domada, Os Físicos etc. Participei dos Festivais de Arcozelo, do Paschoal Carlos Magno, aqui em São Paulo, no SESC Anchieta, aqueles Festivais Amadores organizados pelo Carlos Lupinacci e até trouxemos espetáculos amadores de lá para o Teatro Paiol e Oficina na época. No Oficina, fizemos Trativelindepraglutifitotinquelux, do Roberto Freire. Bom, daí em diante resolvi que queria fazer cenografia para teatro profissionalmente. Acabei vindo para São Paulo, fazer arquitetura ou artes plásticas em 1970, tendo passado o ano de 1969 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Rio Preto fazendo um ano de matemática. Nesse ano, me lembro que fui ver uma palestra do Zé Celso na Faculdade, incrível, onde ele na saída foi preso e levado à delegacia. Participei também de protestos pela rua, em silêncio, cantando baixinho o Hino Nacional. Tempos duros aqueles.
Miguel Arcanjo Prado – Como foi chegar a São Paulo para estudar na FAU-SP em plena década de 1970?
J. C. Serroni – Vim para São Paulo, fiz cursinho, estudávamos juntos eu e o [Roberto] Arduin, o tio da Sukita, todo dia. Ele morava numa pensão, na rua Santo Antônio, a Pensão da D. Edite. Eu ia pra lá às tardes, e depois íamos para o cursinho na Rua São Vicente, ali do lado. Eu entrei na FAU-USP e ele entrou na FAU- Santos. Isso fez com que fizéssemos por quatro anos o desfile da X9 de Santos, como carnavalescos, e ganhamos os quatro carnavais. Depois, fiz ainda Carnaval em São Paulo. Na FAU, descobri um mundo maravilhoso. Tive aulas com Flávio Império, vi coisas incríveis de teatro, acompanhei Festivais da Ruth Escobar, vi “O Balcão”, por ela produzido. Ficava 4, 5 horas na fila para os Festivais de cinema do Masp, ia muito ao Cine Bijou. Vivi uns anos incríveis numa faculdade com muita abertura para as artes: de lá na época vingaram muitos artistas com quem convivi. Da minha turma de 1972 também estiveram: Guilherme Arantes, Tales Pan Chacon, Felipe Crescenti, Augusto Francisco, Eva Furnari, Gal Ópido, muitos artistas, poucos arquitetos e urbanistas.
Miguel Arcanjo Prado – Como você foi se firmando na cenografia teatral? Quem foram seus grandes mestres?
J. C. Serroni – Continuei fazendo trabalhos em Rio Preto, onde ia com frequência. E acabei, no último ano da Faculdade, indo trabalhar na TV Cultura. Minha orientadora no trabalho de conclusão de curso, Lucrécia Daléssio, era casada com o José Armando Ferrara, Coordenador do Departamento de Cenografia e Arte da TV Cultura. Ele que foi o cenógrafo de “Morte e Vida Severina”, primeiro espetáculo de sucesso internacional de teatro brasileiro, em Nancy, na França. Entrei [na TV Cultura] como assistente de cenografia e depois de alguns meses já estava fazendo cenografia de teleteatros, musicais, Festivais de Jazz, telecurso segundo grau, jornais etc. Lá conheci Antunes Filho, Antonio Abujamra, Adhemar Guerra, Kiko Jaess, Atílio Riccó, entre outros. Meus mestre foram Flávio Império, o próprio Armando Ferrara, e na época já via tudo do Gianni Ratto, já conhecia J. Svoboda, por quem me apaixonei de cara.
Miguel Arcanjo Prado – Do que você sente mais saudade dos anos 1970?
J. C. Serroni – Tenho saudades de tudo isso que mencionei e vivi nos meus primeiros cinco, seis anos, vivenciando o universo cultural da cidade. Nunca me esqueço, de um dia, à meia-noite, eu ali na esquina da Augusta com Matias Aires, passando um frio danado com uns amigos a caminho do Teatro Augusta, indo ver “Entre Quatro Paredes”, com Nathália Timberg. Morava numa República com mais cinco amigos, todos de Rio Preto. E tinha umas quatro meninas, que moravam juntas num apartamento na Nestor Pestana e faziam pós-graduação na PUC. Todas na área de Letras. Acabei me casando com uma delas.
Miguel Arcanjo Prado – Você também trabalhou com o Antonio Fagundes?
J. C. Serroni – Saindo da TV Cultura, em 1983, comecei a trabalhar na CER (Companhia Estável de Repertório) do Antonio Fagundes. Lá fiz “Morte Acidental de Um Anarquista”, um dos maiores sucessos teatrais de São Paulo. O espetáculo ficou 5 anos em cartaz, sempre lotando os teatros por onde passou, em São Pulo e diversas capitais. A direção era do Abujamra, que dirigia na época o TBC, e lá fiz também o Projeto Cacilda Becker. Comecei a trabalhar muito no Teatro, com Abu, Jorge Takla, Marcio Aurélio, Vladimir Capella, Roberto Lage, etc. e acabei mais tarde indo pro CPT trabalhar a convite do Antunes. Isso aconteceu em 1987, quando da primeira vez fui à Quadrienal de Praga.
Miguel Arcanjo Prado – Qual foi seu legado na Fundacen?
J. C. Serroni – Nesse mesmo ano, já no CPT, passei a trabalhar na Fundacen [Fundação de Artes Cênicas, do extinto Ministério da Cultura], dando consultoria a projetos de arquitetura teatral. Viajei o Brasil todo ajudando teatros, grupos em reformas, compra de equipamentos etc. Tudo isso gerou um livro: “Teatros: Uma Memória do Espaço Teatral Brasileiro”, editado pela Editora Senac, em 2002.
Miguel Arcanjo Prado – Qual a importância da parceria com o Antunes em sua carreira?
J. C. Serroni – Conheci Antunes na TV Cultura. Com ele fiz vários teleteatros. Já em 1978, ele começou a montar “Macunaíma”. Chegou a me convidar, mas eu não quis sair da TV naquele momento. Quando vi o espetáculo, me arrependi. Era lindo. Tempos depois, na minha volta de Praga, ele me convidou e eu fui para o CPT, na época de Augusto Matraga com Raul Cortez. Fiz lá mais de uma dezena de espetáculos. Fui com ele para Nova York, onde fizemos “Nelson 2 Rodrigues”. Viajei à Índia por 40 dias com ele, pesquisando Ramayana, para um possível espetáculo que não vingou. Viajamos para muitos países em Festivais. Montei lá um curso de cenografia, fiz exposições, e,a partir do CPT, comecei a participar do projetos de Teatros do SESC, como consultor nessa área, fazendo os projetos de enotécnica e Iluminação cênica. Antunes foi meu grande mestre. Nunca me deixou acomodar. Inquieto, querendo sempre mais. Aprendi lá a estudar. Leituras incríveis por ele sugeridas.
Miguel Arcanjo Prado – Como foi a criação do Espaço Cenográfico?
J. C. Serroni – Em 1997, resolvi deixar o CPT, quando Antunes criou o “Pret-à-Porter”. Era um trabalho baseado quase que só no ator. Achei que podia fazer mais pela cenografia, e aí criei o Espaço Cenográfico. Queria valorizar a cenografia, o técnico de teatro, os iluminadores, a arquitetura teatral. Lá, fiz um jornal bimensal que chegou a 37 edições, organizei fóruns, mantive um curso gratuito, organizei várias participações brasileiras para a Quadrienal de Praga, formei lá muita gente.
Miguel Arcanjo Prado – Como foi ter de tomar a decisão de fechar o Espaço Cenográfico, foi difícil?
J. C. Serroni – O Espaço Cenográfico funcionou por 19 anos, ali ao lado do Teatro de Arena, como um laboratório permanente de pesquisa cenográfica e afins. No ano de 2016, sem patrocínio, bancando tudo com meus recursos, resolvi fechá-lo. Foi muito triste ver mais uma instituição cultural, única, cerrar as portas neste país de descaso com a cultura. Nesse tempo, já estava participando da SP Escola de Teatro, que, generosamente, acolheu o Espaço Cenográfico na unidade Brás. Todo acervo de maquetes e biblioteca estão hoje por lá integrando o projeto da Escola.
Miguel Arcanjo Prado – Com é fazer parte do time que criou a SP Escola de Teatro? Como é compartilhar seus conhecimentos, formando novas gerações?
J. C. Serroni – Quando fui convidado pelo Ivam Cabral para integrar o grupo que pensou a SP Escola de Teatro fiquei muito feliz, pois esse era um projeto antigo meu. Poder criar um curso de Técnicas de Palco e ver a escola crescer, se firmar, ser modelo já para fora do país, é tremendamente realizador. Conviver com meus amigos artistas lá, todos preocupados com a formação, é sem dúvida uma grande emoção. Saber que estamos transformando o mundo. As pessoas, podendo exercitar, e sabendo que estamos promovendo a inclusão total de pessoas.
Miguel Arcanjo Prado – Com esta pandemia, o teatro vive um momento crítico. O que você deseja ao futuro do teatro? E ao futuro do Brasil?
J. C. Serroni – A pandemia, apesar da sua crueldade, está nos provocando a encontrar novos caminhos para o teatro, para a vida. Todos temos que nos reinventar, criar novas metodologias, novas relações. Amadurecer com as possibilidades das tecnologias, sem transformar as pessoas em robôs. Tentar manter a humanidade no teatro. O encontro, mesmo que a distância. Não podemos nos deixar abater. Tudo vai passar, apesar de nossos governantes não terem olhar para nossa educação, nossa cultura. Quanto ao futuro do país, não tenho muita esperança. Só nos resta muita luta e muita indignação.
Miguel Arcanjo Prado – Como é chegar aos 70 anos? Qual a sensação que dá?
J. C. Serroni – Chegar aos 70 anos, com saúde, podendo trabalhar, criar, se relacionar com as pessoas queridas, e ainda ter esperança no futuro, é, pra mim, uma sensação muito boa. O teatro há de nos manter vivos por muito tempo, apesar dos percalços que teremos que enfrentar.