Por Miguel Arcanjo Prado
Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪✪
Esta crítica nasce atrasada. Até porque esta obra analisada do Teatro Caminho foi uma resposta artística tão imediata quanto o susto que todos levamos com a pandemia do novo coronavírus, que nos ceifou milhares de vidas e nos roubou a liberdade do ir e vir. Foi preciso um certo tempo, e distanciamento, para que este crítico conseguisse processar algo que fluísse naturalmente.
O ator Ricardo Cabral estreou seu solo O Filho do Presidente em 7 de abril de 2020 dirigido por Natasha Corbelino já em um feito histórico: foi a primeira peça inédita do teatro brasileiro a estrear originalmente no formato do teatro digital, pelo aplicativo até então desconhecido de muitos Zoom – este crítico, por exemplo, o baixou pela primeira vez para assistir ao espetáculo.
A obra iria estrear no teatro presencial, na intimidade de um apartamento, mas, com a pandemia e a quarentena, Corbelino e Cabral transformaram o medo e a impossibilidade em ação e decidiram colocaram a peça no ar em formato live on-line, isso inclusive bem antes das lives musicais surgirem.
Ricardo Cabral foi o segundo ator no país a abraçar um temporada digital, e o primeiro com obra inédita. É preciso lembrar que primeiro ator do teatro digital, não só no Brasil como no mundo, foi Ivam Cabral – com Todos os Sonhos do Mundo, dirigido por Rodolfo García Vázquez, do Satyros – peça que vinha sendo apresentada no teatro “real” e que iniciou corajosa e pioneira temporada no Instagram no dia 20 de março de 2020, uma semana após o decreto de quarentena.
Aliás, o Satyros depois fez história no mundo inteiro com a peça A Arte de Encarar o Medo, escrita por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez e dirigida pelo último, que estreou em junho e logo depois ganhou montagens africano-europeia com o grupo sueco Darling Desesperados e outra estadunidense, sendo a única peça montada ao mesmo tempo em 3 continentes na história do teatro brasileiro.
Mas, voltemos ao igualmente histórico e pioneiro O Filho do Presidente, espetáculo indicado ao Prêmio Arcanjo de Cultura. O texto de Ricardo Cabral revela que o autor carioca é um escritor de talento evidente. O artsita constrói uma narrativa confessional verborrágica, contemporânea, jovem e altamente carioca.
A narratividade traz referências geográficas dominadas pelos habitantes da tal ‘Cidade Maravilhosa’, em certos momentos denota até mesmo aquele bairrismo explícito dos moradores do Rio.
Há muito do Rio de Janeiro no texto de Ricardo Cabral. Desde este orgulho em citar bairros e ruas até sensações típicas cariocas como buscar refúgio do calor sufocante da rua ao entrar de supetão em um algum estabelecimento comercial para sentir a mudança climática imposta pelo ar-condicionado.
Se o espectador não-carioca pode até se desnortear diante de tantas referências cariocas que não domina, isso serve também para criar um certo movimento verborrágico-semiótico que o texto impõe.
Na encenação, Corbelino vai em sincronia com o texto pós-tudo de Cabral e lima barreiras entre narrador-ator-personagem, criando uma espécie de girar significativo constante que casa com perfeição à metralhadora de palavras do dramaturgo-cronista, ao seu corpo e às novidades de linguagem de um teatro digital em descoberta.
O dramaturgo terá de me perdoar, mas enxergo neste texto, sobretudo, um cronista capaz de sentir a poesia urbana que emana das contradições do Rio e que já foram foram consagradas, por exemplo, no livro Rio de Janeiro – Um Retrato, supervisionado pelo grande jornalista Fausto Wolf, com repórteres pelas ruas cariocas à espreita de personagens e histórias.
Há também na dramaturgia de Cabral um quê de João do Rio, o primeiro repórter-escritor que nos ensinou a flanar pelas ruas e criou o jornalismo literário meia década antes de este termo ser alcunhado pelos norte-americanos. E cuja relação com sua cidade foi cristalizada em seu próprio nome artístico.
Num país sem leitores, o escritor se transmuta em dramaturgo e ator para seguir comunicando, isso está posto de certo modo neste espetáculo. Pelo menos este crítico sentiu assim.
O personagem que Ricardo Cabral nos apresenta acaba sendo, de certo modo, um retrato de uma geração de jovens que ascenderam a novos lugares e, cujo pensamento parece ir de encontro ao status-quo do tempo presente, o que gera um grande descompasso. E, obviamente, frustração, seguida de revolta.
A já conhecida (e irresolvível?) violência urbana carioca pulsa no texto tanto quanto o calor da cidade e o desejo que emana de olhares, corpos (o do próprio ator-dramaturgo-escritor) e apartamentos abafados.
Falando em libido, outra palavra comumente associada ao Rio, Ricardo Cabral constrói uma cena sexual despudorada e sem qualquer tipo de restrições. O que ganha significados políticos no Rio (e Brasil) que vestiu a máscara do conservadorismo hipócrita.
O fim catártico do espetáculo é cercado de simbolismos. O Filho do Presidente rebate de forma violenta e na mesma medida o que é recebido por uma geração de um inescrupuloso plano político e utiliza a morte como única ação para a retomada da vida livre. É algo forte e angustiante, sobretudo para um espetáculo que nasceu justamente quando o mundo implorava por um fio de esperança e de liberdade. O Filho do Presidente é uma peça que se fez histórica justamente pela ousadia e coragem artística.
Nota do crítico: Você tem chance rara de ver esta peça histórica. O Filho do Presidente, com texto e performance de Ricardo Cabral e direção de Natasha Corbelino, faz sessão especial neste sábado (3), às 20h, na SP Escola de Teatro Digital. Os ingressos custam R$ 12,50 e a renda será revertida para os artistas. Há uma cota para pessoas em situação de vulnerabilidade, mas seja consciente e contribua se puder. Adquira o seu ingresso.
Foto do ator Ricardo Cabral: Carolinha Calcavecchia/Divulgação