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Thiago Blumenthal, adeus, meu amigo elegante

Por Miguel Arcanjo Prado

Thiago Blumenthal foi o amigo mais elegante que tive. Sua partida abrupta, aos 39 anos, com seu coração parando de repente, sem a chance de uma última conversa, um último adeus, neste tão louco 2020, deixa destroçado qualquer um que o tenha conhecido com proximidade. Este é o meu caso, na manhã deste domingo de sol, sabendo que ele se foi, assim, de repente, num sábado de primavera quase verão paulistano.

Conheci o Blumenthal, que era como o chamava, em 2008, na frenética redação da Folha Online, no sexto andar do prédio da Folha de S.Paulo, na rua Barão de Limeira. Eu era ainda um jovem jornalista mineiro que tinha chegado a São Paulo havia um ano, tinha passado pelo Curso Abril de Jornalismo e revista Contigo! e acabava de conseguir meu segundo e tão sonhado emprego na metrópole, como repórter da Ilustrada, então sob chefia do Sérgio Ripardo, que fazia a coluna Destaques GLS — da qual era leitor ávido.

O Blumenthal trabalhava na Livraria da Folha, editando os livros publicados no jornal e oferecido aos leitores com generosos descontos no calhamaço de domingo. Nessa época, ainda se fazia um jornalismo de qualidade no Brasil e, nas grandes redações, todavia era possível conhecer jovens gênios, como era o caso de Thiago Blumenthal, que naquela época já era mestre em Literatura pela USP, com uma dissertação sobre Kafka.

Não me lembro bem o porquê, mas ele foi passar um tempo como repórter temporário de Ilustrada, sendo meu companheiro no cotidiano de trabalho. Foi trazido pela Ligia Braslauskas, então chefe de redação e uma das jornalistas mais exigentes com quem trabalhei, daquelas chefonas de redação iguais às dos filmes de Hollywood, e por quem à época nutria um misto de admiração e medo. Pois bem. Ligia amava o Blumenthal, dizia que ele era inteligente, sofisticado e tal, que falava inglês fluente, sabia tudo sobre os livros e ordenou que eu devia ser amigo dele.

Vi na minha frente aquele rapaz muito magro, de olhar tímido, fala pausada e português irretocável. Eu, todo expansivo, logo comecei a me aproximar, tentava impressioná-lo, mostrando que também era muito versado nos livros, o que servia para quebrar todos os gelos. Na convivência diária na redação e nos nossos almoços rápidos — porque, nessa época, na Folha, jornalista não podia almoçar com calma —, nós fomos desenvolvendo uma amizade e admiração mútuas. Eu expansivo, ele comedido. Fui me encantando perdidamente com aquele rapaz judeu introspectivo, mas que comigo se abria. Pouco a pouco nascia uma amizade.

O tempo passou, fui para o jornal Agora São Paulo, o primo pobre da Folha, e ele foi para não sei lá onde, até que nos reencontramos, na redação da rua da Várzea, na Barra Funda, que criou o R7, o portal da Record, numa época em que por lá estavam algumas das cabeças mais inteligentes do jornalismo brasileiro, atraídas por salários que eram o dobro do que todos recebíamos na Folha; eu inclusive.

Ligia Braslauskas, que, como eu, havia se transferido da Folha para a Record para comandar a nova redação, onde assumi o posto de editor de Famosos e TV, o carro-chefe de audiência do portal ao lado do famigerado Blog da Fabíola Reipert, trouxe para chefiar a editoria de Cinema ninguém menos que ele, Thiago Blumenthal. Foi com sorriso no rosto que vi Ligia apresentando o meu amigo a todos da redação, dizendo que ele era “um excelente editor”. E era mesmo. Passei, outra vez, a dividir bancada com o Blumenthal e a compartilhar com ele almoços inteligentes e mais longos dessa vez, já que, pelo menos isso, a Record prezava pelo horário de almoço digno de seus funcionários.

Falávamos de um tudo, não só da vida e da arte, como também da burrice que cada vez mais alcançava o jornalismo diário e o nosso dia a dia, se impondo com cobranças absurdas até que ele não mais desse conta e pedisse as contas. Blumenthal era muito inteligente para transformar sua editoria de Cinema em apenas galerias de super-heróis da Marvel. Não que se negasse a fazer, mas queria também escrever sobre outros tipos de filmes, o que, com a pressão por cliques, foi se tornando algo impossível.

Mas ele saiu com a aquela elegância que só ele tinha. Lembro que, antes de pedir demissão, me contou que o faria, perguntou o que eu achava, mas disse já estar resoluto. E eu não tive outra alternativa senão apoiá-lo, mesmo sabendo que ficaria sem o meu amigo inteligente por perto.

Daí, por essas tristezas da vida na metrópole, a vida foi nos separando. Cada um com a loucura do seu próprio cotidiano para ganhar o pão. De todo modo, aplaudi quando ele criou uma editora, a Lote 42, ao lado de outro colega nosso de redação, o João Varella, de quem se tornou amigo íntimo — o que me matava de ciúme, por mais que jamais confessasse. Blumenthal chegou a propor inclusive publicar um livro meu, com as primeiras crônicas que escrevi nos tempos de faculdade na UFMG. Chegou a preparar o material, que ainda não foi publicado e, quando for, será dedicado a ele.

Depois, fui acompanhando aquele gênio como leitor, em artigos maravilhosos na revista digital Estado da Arte, no Estadão e, mais recentemente, soube que ele estava fazendo um podcast, o Afinidades Eletivas, com a Juliana Albuquerque, se jogando nessa tal reinvenção digital que todos os jornalistas e escritores da nossa geração precisam fazer diariamente. Com papos inteligentíssimos, como era de seu feitio.

Mas hoje, neste domingo tão triste que choro sua partida, fico com dois e-mails que o Blumenthal me mandou há exatos dez anos, em 2010. Um pelo meu aniversário. Outro pelo Natal, que ele, mesmo sendo judeu, fez questão de desejar aos amigos mais íntimos. Deixo com ele as palavras:

3 de dezembro de 2010

“Miguel, sou todo envergonhado pra dar parabéns abraçando e tudo.

Mas você sabe o quanto eu gosto de você e te admiro. É um exemplo de pessoa, de amigo e de sinceridade. Isso sem falar no quanto admiro sua inteligência, o seu conhecimento e tudo.

Uma coisa que não vou esquecer é quando você mandou o cartãozinho de Natal no ano passado. Foi um gesto que eu não esperava (não por não te conhecer, mas porque nunca recebo de ninguém) e até hoje guardo na lembrança.

Sou seu fã. Parabéns, tudo de bom, e conte comigo sempre.

Do seu amigão,

Thiago Blumenthal

24 de dezembro de 2010

“Oi, pessoal.

Sei que muita gente dessa minha pequena lista não comemora o Natal, mas não posso fingir que a data não existe. Queria desejar a todos vocês feliz Natal. Que vocês se divirtam muito nessa data!

E aproveito a ocasião para também desejar um 2011 cheio de alegria para cada um de vocês. São poucos os meus amigos e colegas, mas são muito valiosos. 

Vou reproduzir a mesma mensagem que mandei aos amigos judeus em Rosh Hashaná. A ideia é a mesma e serve para toda a humanidade. 🙂

O rabi Nachman de Bratslav costumava repetir um dito de seu bisavô, o Baal Shem Tov: Ai de nós, o mundo está cheio de incríveis luzes e maravilhas e o homem as encobre de si próprio com sua mãozinha. O rabi também dizia: Se você crê que é possível destruir, acredita então que é possível reparar.

Que tenhamos um ano em que deixemos surgir as luzes e maravilhas do mundo e reparemos o que deve ser reparado.


Feliz ano novo, meus amigos!

Thiago Blumenthal

Adeus, Blumenthal. Descanse em paz.

Miguel Arcanjo Prado é jornalista, mestre em Artes pela UNESP, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e bacharel em Comunicação Social pela UFMG. Eleito três vezes pelo Prêmio Comunique-se um dos melhores jornalistas de Cultura do Brasil. Nascido em Belo Horizonte, vive em São Paulo desde 2007. É crítico da APCA, da qual foi vice-presidente. Passou por Globo, Record, Folha, Contigo, Editora Abril, Gazeta, Band, Rede TV e UOL, entre outros. Desde 2012, faz o Blog do Arcanjo, referência no jornalismo cultural. Em 2019 criou o Prêmio Arcanjo de Cultura no Theatro Municipal de SP. Em 2020, passou a ser Coordenador de Extensão Cultural e Projetos Especiais da SP Escola de Teatro e começou o Podcast do Arcanjo em parceria com a OLA Podcasts. Foto: Bob Sousa.

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