Crítica: A Bicicleta de Papel exala delicadeza da vida que brota da amizade sincera
Crítica por Miguel Arcanjo Prado: Muito Bom ✪✪✪✪
Em tempos de tão dura realidade, precisamos que a arte nos emane delicadeza. Por isso, foi com alegria que este crítico assistiu à primeira estreia presencial do teatro paulistano neste esperançoso 2021: a sensível peça A Bicicleta de Papel, escrita por Luccas Papp e protagonizada por ele e Leonardo Miggiorin sob direção de Ricardo Grasson e produção da LPB Produções e Nosso Cultural.
Respeitando todos os protocolos de segurança, com espectadores e funcionários de máscara, além de entrada e saída escalonada na sala teatral, onde se mantém o devido distanciamento, o espetáculo pode ser apreciado todos os domingos, às 19h, no Teatro das Artes, no Shopping Eldorado, em São Paulo, até 28 de fevereiro.
Depois de um 2020 frenético em que encenou quatro diferentes espetáculos, dois presenciais antes da pandemia — O Ovo de Ouro e O Canto de Ninguém — e dois digitais durante o período de quarentena — O Estranho Atrás da Porta e A Ponte —, Luccas Papp volta aos palcos com um texto mais solar e esperançoso do que demonstrou com a tensão em altos decibéis de A Ponte, seu último espetáculo no fatídico ano passado.
A Bicicleta de Papel é uma peça serena e que traz uma importante reviravolta ao final, com um Luccas Papp também mais dinâmico como ator, com voz modulada, respirações mais orgânicas e entrega mais presente e consciente ao seu personagem, Ian. Trata-se de um jovem que vive o tormento de um acidente que marcou não só seu passado como insiste em ser um fantasma em seu presente.
Como contraponto, ele tem a sabedoria do amigo Noah, funcionando quase como uma inconsciente voz da razão pela vida, interpretado por um cada vez mais seguro em cena Leonardo Miggiorin. Aliás, o ator é prova de que o tempo só faz bem à maioria dos intérpretes. O talento que todos nós já conhecemos há 20 anos, desde que ele despontou como o adolescente platônico da minissérie A Presença de Anita, de Manoel Carlos, na Globo, surge mais moldado. Já tendo ultrapassado a barreira dos 30 e caminhando tranquilamente para a sobriedade dos 40, Miggiorin mostra-se homem feito, seguro de si.
Ricardo Grasson acerta como diretor nesta aposta em criar uma cumplicidade crível entre os dois atores em cena. O que é fruto, obviamente, de muito trabalho de ensaio. Afinal, para que o corpo exale cumplicidade, esta precisa ser trabalhada para além do texto e de forma orgânica, o que se observa no espetáculo e é o que cativa o espectador, fazendo-o se identificar com aquela delicada relação a dois. Heitor Garcia assina a assistência de direção e produção executiva, zelando pelos detalhes cruciais à obra.
Na intensa e longeva relação de amizade entre os dois personagens, incide certo grau de desejo mútuo, sem chegar a ser sexualizado, em uma proposta sofisticada da direção, sobretudo quando brincam de luta ou mesmo dançam despretensiosamente um adorável hit de Michael Jackson — aliás, a trilha sonora do espetáculo, assinada por Catarina Kobayashi, é impecável em seu remember oitentoso.
A iluminação, assinada por Gabriele Souza, apesar de ter momentos poéticos e funcionais, como quando dá destaques aos objetos do cenário desenhado a giz, como recortando a TV que dita a expectativa para o ano vindouro, em certos momentos deixa os rosto dos atores excessivamente na penumbra, o que prejudica, de certo modo, que o público acompanhe devidamente as nuances de suas atuações, sobretudo em um teatro de grande escala. Uma luz direcionada mais frontal e menos perpendicular, aliada a uma boa marcação da direção, resolveria facilmente essa questão, o que certamente será azeitado com o andamento da temporada.
A peça ainda conta com participações afetivas com voz em off de Elias Andreato, Ando Camargo, Rita Batata e Lívia Marques. E conta com cenografia simples e sofisticada assinada por Papp e Grasson: o já dito quadro no qual o elenco desenha com um delicado giz os objetos do apartamento no qual se passa a história.
O figurino futurista de Cássio Scapin coloca os personagens de branco, já que tudo se passa na noite de Réveillon do ano 2000, com todos os desejos e presságios de mudança (para melhor?) do novo milênio que bate à porta.
Em A Bicicleta de Papel, a dramaturgia de Luccas Papp, um dos autores jovens mais propositivos no teatro paulista nos últimos anos, peça surge mais madura e redonda, construindo com perspicácia seu ponto nevrálgico: como o amor emanado por uma amizade sincera torna-se responsável pela manutenção da vida. E um brinde à vida neste momento tão duro para a humanidade é o que mais precisamos.
A Bicicleta de Papel – Domingos, às 19h. Drama. 60 min. A partir de 10 anos. Teatro das Artes (Shopping Eldorado – Av. Rebouças, 3970, Pinheiros, CPTM Hebraica Rebouças, São Paulo). R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia) e R$ 25 (lista amiga). Até 28/2/2021. Retire seu ingresso.
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Miguel Arcanjo Prado é jornalista, mestre em Artes pela UNESP, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e bacharel em Comunicação Social pela UFMG. Eleito três vezes pelo Prêmio Comunique-se um dos melhores jornalistas de Cultura do Brasil. Nascido em Belo Horizonte, vive em São Paulo desde 2007. É crítico da APCA, da qual foi vice-presidente. Passou por Globo, Record, Folha, Contigo, Editora Abril, Gazeta, Band, Rede TV e UOL, entre outros. Desde 2012, faz o Blog do Arcanjo, referência no jornalismo cultural. Em 2019 criou o Prêmio Arcanjo de Cultura no Theatro Municipal de SP. Em 2020, passou a ser Coordenador de Extensão Cultural e Projetos Especiais da SP Escola de Teatro e começou o Podcast do Arcanjo em parceria com a OLA Podcasts. Foto: Edson Lopes Jr.
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