Ícone do site Blog do Arcanjo

Pare tudo e veja Pose na Netflix: série fabulosa, impactante e necessária!

Crítica por Miguel Arcanjo Prado: Ótimo ✪✪✪✪✪

Você deveria parar tudo neste verão, correr para Netflix e assistir à série Pose. É fabulosa, impactante e necessária. As duas primeiras temporadas estão disponíveis no serviço de streaming. A superprodução do gênio inesgotável Ryan Murphy é ambientada na frenética Nova York no fim dos anos 1980 até começo da década de 1990, repleta de um glamour pop chamuscado pela epidemia do HIV.

De tão exuberantes, os figurinos são um charme a mais na história da comunidade LGBTQIA+ negra e latina que promove a ball culture, com seus bailes de disputa por looks suntuosos e dança estilo vogue — cujo nome é uma referência às poses de modelos na famosa revista de moda. A disputa ocorre entre as famosas Casas, apartamentos que reuniam pessoas geralmente expulsas de suas casas pelo preconceito e que se apoiavam mutuamente, formando uma família escolhida.

Ouça o Podcast do Arcanjo!

No mundo hétero as brigas de gangues provocavam carnificina nos bairros pobres das grandes metrópoles norte-americanas nos anos 1980, como retratado no clipe Bad, de Michael Jackson. Por outro lado, o confronto da comunidade LGBTQIA+ se dava na disputa de quem tinha o melhor visual e, de quebra, ainda conseguia destruir o rival apenas com palavras ferinas, ironias inteligentemente construídas para abalar para todo o sempre qualquer pose concorrente a partir de uma ‘leitura’ minuciosa de seus defeitos mais profundos.

A arte imita a vida

Nos bailes, travestis, gays, lésbicas, trans e outras facetas do gênero e da sexualidade encontram lugar de representatividade e conexão de pessoas que passam pelo mesmo dilema de rechaço social. É como se os bailes fosse um mundo de sonho (e de guerra também), no qual essas pessoas pudessem vivenciar de forma mágica um momento efêmero de fama, glória e acolhimento. Mesmo que a realidade lá fora continuasse cada vez mais sombria, com a Aids à espreita, como retratou muito bem o documentário Paris Is Burning, de 1990, dirigido por Jennie Lavingston, inspirador da série Pose.

POSE — “Giving and Receiving” — Season 1, Episode 3 (Airs Sunday, June 17, 9:00 p.m. e/p) Pictured (l-r): Indya Moore as Angel. CR: Sarah Shatz/FX

Alguns fatos do documentário são reproduzidos integralmente por Murphy, como a história da menina trans linda que deseja abandonar a prostituição no píer em busca de uma carreira de top model, história desenvolvida na série por Angel, personagem da belíssima Indya Moore. Ou do garoto gay bailarino que sonha em participar de uma turnê de Madonna, defendido por Ryan Jamaal Swain com seu doce Damon, que faz seu percurso profissional entre idas e vindas com o perigosamente belo e charmoso Ricky, defendido por Dyllón Burnside.

Trans talentosas e protagonistas

O elenco absolutamente talentoso é composto, em sua maioria, por atrizes trans em papéis protagonistas, coisa infelizmente ainda rara não só na indústria de entretenimento estadunidense como também na brasileira. A série quebra preconceitos e estereótipos. A produção humaniza tais figuras, expondo seus dramas pessoais e necessidades afetivas.

É preciso aqui ressaltar as atuações incontestáveis das duas mães rivais: a sensível MJ Rodriguez como Blanca Evangelista e a hipnotizante Dominique Jackson como Elektra. Billy Potter, por sua vez, com seu mestre de cerimônias Pray Tell, tenta apagar as faíscas entre as duas que foram por ele mesmo alimentadas no comando dos bailes; ele ainda enfrenta pessoalmente a maior sentença daqueles tempos: descobrir-se soropositivo.

É preciso ainda falar de Angelica Ross, na pele da espevitada Candy, sempre preterida nos bailes por seus figurinos considerados pobres, mas cuja personagem é a que provoca maior emoção no público na segunda temporada. Também é preciso mencionar a importância do contraponto “patricinha” feito pela Lulu de Hailier Sahar na construção da rivalidade que permeia a série.

É um retrato do preconceito que nenhuma das atrizes trans de Pose tenha ganhado o Emmy ou sequer sido indicadas. Apenas Billy Potter foi indicado e tornou-se o primeiro homem negro e gay da história a ganhar o troféu de Melhor Ator, considerado o Oscar da televisão.

Risos e lágrimas

As dores e delícias do roteiro, que despertam gargalhadas ou choro irrefreável nos espectadores, ocorrem ao ritmo de uma trilha sonora que reúne o melhor do que a música produziu naqueles áureos 80’s em que o cotidiano tinha um quê do delicioso exagero visual de Cyndi Lauper.

Mas quem reina na trilha da segunda temporada é Madonna, com seu hit inesquecível Vogue, que legitimou mundialmente a dança e estilo de vida daquela população — que o diga José Gutierez Xtravaganza, da Casa Xtravaganza, que tornou-se coreógrafo do clipe da diva do pop e bailarino de turnê mundial Blond Ambition Tour, ao lado do irmão Luis Xtravaganza, e até hoje dá aulas do estilo mundo afora — inclusive ele esteve no Brasil no começo de 2020.

Pose é série histórica

Pose é uma série histórica e icônica, que contrasta a desigualdade da Nova York branca dos edifícios de Manhattan e sua Wall Street com a cidade negra e latina dos guetos. E reforça que a vida era bem mais colorida (e também extenuante) do lado menos cartão-postal da Big Apple. Mas, repleto das pessoas mais interessantes e de dramas bem mais profundos do que os mostrados em séries nova-iorquinas como Friends ou Sex and the City.

Pose é inigualável. Se não viu ainda, não perca mais tempo. Comece a maratona agora mesmo.

Siga o crítico @miguel.arcanjo

+ Artistas, Cultura e Entretenimento

Miguel Arcanjo Prado é jornalista, mestre em Artes pela UNESP, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e bacharel em Comunicação Social pela UFMG. Eleito três vezes pelo Prêmio Comunique-se um dos melhores jornalistas de Cultura do Brasil. Nascido em Belo Horizonte, vive em São Paulo desde 2007. É crítico da APCA, da qual foi vice-presidente. Passou por Globo, Record, Folha, Contigo, Editora Abril, Gazeta, Band, Rede TV e UOL, entre outros. Desde 2012, faz o Blog do Arcanjo, referência no jornalismo cultural. Em 2019 criou o Prêmio Arcanjo de Cultura no Theatro Municipal de SP. Em 2020, passou a ser Coordenador de Extensão Cultural e Projetos Especiais da SP Escola de Teatro e começou o Podcast do Arcanjo em parceria com a OLA Podcasts. Foto: Bob Sousa.

Siga @miguel.arcanjo

Ouça o Podcast do Arcanjo

Please follow and like us:
Sair da versão mobile