Por Miguel Arcanjo Prado
A TV brasileira viu neste domingo, 31, uma situação desrespeitosa com uma artista da história da música brasileira. No programa The Voice +, na Globo, os jurados ficaram de costas para a grande cantora Claudya (antes Claudia), 72 anos, talento icônico e dona do hit atemporal Deixa eu Dizer, sucesso de 1973 que embala até hoje as pistas com pessoas mais interessantes neste país quase cinco décadas depois. Claudya defendeu a música de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza no reality musical, mas praticamente não foi reconhecida pelos jurados Ludmilla, Claudia Leitte, Daniel e Mumuzinho. No fim, apenas Claudia Leitte se virou. A única a fazer isso.
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Claudia Leitte, quando se deu conta de que a xará era um ícone da música, confessou que não a tinha reconhecido diante das câmeras, apesar de ter afirmado depois que leu a biografia de Claudya e elogiar a veterana. Justiça seja feita: Claudia Leitte foi a única a se virar e reconhecer Claudya, mesmo que tardiamente. Os outros jurados, nem isso.
O que nos leva a perguntar: se os jurados do The Voice + fizessem um teste de conhecimentos gerais da história da música brasileira seriam aprovados?
E ficam mais questões à deriva: Os jurados do The Voice + têm competência para julgar alguém com carreira bem mais longeva a deles? Será que algum destes jurados terão suas músicas entoadas por novas gerações daqui a 50 anos, como acontece com Claudya?
Este crítico imagina uma situação hipotética: se Cazuza se apresentasse no programa, era bem capaz de os jurados não se virarem e ainda dizerem para o nosso grande poeta do rock que ele tinha língua presa e que jamais faria sucesso cantando daquele jeito.
O ocorrido com a cantora ainda tem um agravante: Claudya faz parte dos artistas pioneiros que ajudaram a criar o espaço para a música na televisão brasileira, fonte da qual hoje bebe o The Voice + na Globo.
Claudya brilhou no lendário programa O Fino da Bossa, disputando em nível de igualdade com Elis Regina nas noites da Record, nos anos 1960, cantando ao vivo e encantando os telespectadores. Contudo, uma rixa entre as duas idealizada pelo compositor e produtor musical Ronaldo Bôscoli, que foi marido de Elis, acabou ofuscando a participação de Claudya na atração. Mas, ela seguiu em frente e trilhou seu próprio caminho.
Em 1969, foi Claudya quem ganhou o Festival Fluminense da Canção, com a música Razão de Paz para Não Cantar. O sucesso por aqui a alçou a voos internacionais, tornando-se a cantora brasileira mais premiada lá fora no começo dos anos 1970, participando de festivais na Grécia, Japão, Espanha, México e Venezuela, consagrando a música brasileira no exterior.
Entre 1983 e 1986, Claudya foi especialmente convidada para protagonizar Evita na primeira versão brasileira para o famoso musical da Broadway, dirigida aqui por Maurício Shermann — que depois dirigiu o humor na Globo. Na superprodução, ela contracenou com Mauro Mendonça, como Juan Domingos Perón, e Carlos Augusto Strazzer, como Che Guevara, em temporadas consagradoras de público e crítica no Teatro João Caetano, no Rio, e Teatro Palace, em São Paulo. Sua gravação para “Não Chores por Mim Argentina” foi eternizada no disco Evita, lançado pela Som Livre em 1983.
Em 2008, o inteligente Marcelo D2 recuperou a importância de Claudya para as novas gerações, ao colocar seu hit Deixa eu Dizer em dobradinha com a sua Desabafar, levando novamente a canção e a voz de Claudya às paradas de sucesso e às pistas de dança.
Com todo esse currículo, Claudya teve sua história sapateada pela ignorância sobre ela demonstrada pelos jurados do concurso musical global.
Este país desmemoriado é muito desrespeitoso com seus grandes artistas. E, ao permitir uma situação como essa com Claudya no The Voice +, a Globo, maior emissora do Brasil, parece aplaudir a ignorância. Lamentável.
Nota do colunista: Sobre o ocorrido, nesta segunda, 1º, Claudya agradeceu ao The Voice+ e declarou com generosidade: “Vejo nessa oportunidade um recomeço, então vamos vibrar dessa forma”. Que assim seja. O Blog do Arcanjo deseja todo o sucesso do mundo para nossa grande cantora. E a aplaude de pé.
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Miguel Arcanjo Prado é jornalista, mestre em Artes pela UNESP, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e bacharel em Comunicação Social pela UFMG. Eleito três vezes pelo Prêmio Comunique-se um dos melhores jornalistas de Cultura do Brasil. Nascido em Belo Horizonte, vive em São Paulo desde 2007. É crítico da APCA, da qual foi vice-presidente. Passou por Globo, Record, Folha, Contigo, Editora Abril, Gazeta, Band, Rede TV e UOL, entre outros. Desde 2012, faz o Blog do Arcanjo, referência no jornalismo cultural. Em 2019 criou o Prêmio Arcanjo de Cultura no Theatro Municipal de SP. Em 2020, passou a ser Coordenador de Extensão Cultural e Projetos Especiais da SP Escola de Teatro e começou o Podcast do Arcanjo em parceria com a OLA Podcasts. Foto: Edson Lopes Jr.