O centenário da maior atriz que o teatro brasileiro conheceu não poderia passar a brancas nuvens neste desmemoriado Brasil. Há exatos 100 anos nascia Cacilda Becker, no dia 6 de abril de 1921, em Pirassununga, interior de São Paulo.
A efeméride tão especial é recordada nesta terça (6) de forma digital pela família da artista e também pelo Teat(r)o Oficina, que a louvou em peças dirigidas por Zé Celso.
O Itaú Cultural também preparou um dossiê digital para homenagear a atriz, com imagens raras e depoimentos exclusivos no site da instituição.
Já o Grupo Bandeirantes informou ao Blog do Arcanjo que está digitalizando o vasto acervo de Cacilda Becker. Uma edição especial dos espetáculos Um Breve Encontro, A Vaidosa e Elizabeth da Inglaterra irá ao ar no canal Arte1 em maio e, posteriormente, na Band.
Segundo a emissora do Morumbi, o material estava sendo selecionado pelo diretor Cláudio Petraglia, que morreu após complicações da Covid-19 na semana passada.
Nos arquivos da TV Bandeirantes constam ainda obras como A Grande Mentira, Casa de Bonecas, O Resgate, Vitória Amarga, A Malcriada, Inês de Castro, entre outras, totalizando mais de 60 horas de conteúdo de Cacilda Becker.
Ícone da classe teatral
Além de seu grande talento ao viver grandes personagens, Cacilda Becker se destacou por defender a classe teatral, termo cunhado pro ela mesma, no contexto de censura e perseguição da ditadura militar.
Ela também foi lutadora pela dignidade e profissionalização do artista teatral no Brasil. É dela a famosa frase: “Não me peça de graça a única coisa que eu tenho para vender”, resposta que dava a quem lhe pedia ingressos gratuitos em seus espetáculos.
Homenagens digitais
Nesta terça (6), às 20h, o Oficina transmite em seu Canal TV Uzyna no YouTube, o que chama de “Rito Quente Elétrico” para “celebrar o centenário da atriz-matriz de todos os teatros: Cacilda Becker”.
O grupo de 62 anos de trajetória, fundado por Zé Celso, promete “um rito teatrocinemagráfico com peças, entrevistas, participações quentes especialíssimas, cenas inéditas dirigidas por Zé Celso para o zoom, vertigens e muita makumba, reunidos nesse objeto audiovisual não identificado”.
O Teat(r)o Oficina afirma que “nesse momento em que o teatro está parado, interrompido, celebrar Cacilda é chamar a insurreição da vida”. O grupo ainda conclama a famosa frase de Cacilda Becker “não me peça de graça a única coisa que eu tenho para vender” e estimula o público a contribuir com sua bilheteria digital por meio de depósito PIX chave CNPJ: 53.255.451/0001-36.
Já às 21h30, é a vez de a família celebrar a grande atriz no Canal Conversa Livre no YouTube, onde será realizado um especial sobre Cacilda Becker, que contará com a participação de seu neto, Guilherme Becker, e também da diretora do Teatro Cacilda Becker, Patrícia Boggero. Ambos discutirão a importância da artista para a cultura brasileira e seu legado.
Visita à casa de Cacilda
Em 2019, o Blog do Arcanjo visitou na companhia do fotógrafo Edson Lopes Jr. a casa onde viveu Cacilda Becker (1921-1969), por conta do cinquentenário de sua morte, que marcou o dia 14 de junho de 1969, quando ela se foi com apenas 48 anos de idade.
Cacilda sofreu um aneurisma cerebral no palco, em São Paulo, enquanto encenava a peça Esperando Godot com o marido, Walmor Chagas (1930-2013). Levada para o hospital já em coma, assim permaneceu por 38 dias até não mais resistir e deixar o teatro brasileiro em luto eterno.
A propriedade no bairro do Itaim Bibi, na zona oeste da capital paulista, hoje é circundada por edifícios altos. Mesmo assim, a imponente residência dos anos 1940 se impõe e guarda boa parte do acervo de Cacilda, como fotos, prêmios, livros, figurinos e outros objetos pessoais.
Tudo isso é cuidado por seu neto, Guilherme Becker, e por Ivano Lima, amigo da família e especialista na vida e trajetória da atriz.
Na época, afirmaram sonhar com uma grande exposição, em transformar a casa em espaço cultural, além de buscarem parcerias para um filme biográfico e uma série de televisão com a trajetória da grande atriz do teatro brasileiro moderno, com Leona Cavalli como protagonista.
Leona, que é amiga da família e já interpretou Cacilda no Teat(r)o Oficina, revelou que prepararia um documentário sobre a atriz. Os projetos entraram em suspensão, por conta da pandemia da Covid-19.
Durante a visita, estavam ainda na casa Dadá da Silva, então com 87 anos, que foi babá dos filhos de Cacilda, e Maria Thereza Vargas, então com 90 anos, pesquisadora histórica do teatro brasileiro e autora da biografia de Cacilda Becker.
O Blog do Arcanjo lembra a seguir os principais trechos das entrevistas realizadas em 2019.
Dadá, a babá que sofre há 50 anos com a morte de Cacilda Becker
Aos 87 anos, dos quais há 70 convive diariamente com a família Becker, com a qual começou a trabalhar com apenas 17 anos, a babá aposentada Dadá Silva jamais se esquece do dia em que Cacilda Becker teve o aneurisma cerebral.
Só de lembrar o fatídico dia, se emociona: “Ela não era minha patroa, era minha irmã”, afirma.
“No dia do aneurisma dela, antes de sair de casa para ir ao teatro ela me falou para levar a Maria Clara ao teatro, que ficava na av. Brigadeiro Luís Antônio. Mas eu acabei levando a Maria Clara, que tinha cinco anos, para ver um filme do Walt Disney. Quando cheguei em casa, um repórter ligou, perguntando: ‘É verdade que Cacilda Becker morreu?’. Fiquei tão revoltada que falei um palavrão com ele e desliguei”, recorda.
“Depois, me ligaram e confirmaram a notícia. Quase morri”, lembra. “Ela era tão moça, tão bonita… Meu mundo caiu. É uma dor que carrego comigo até hoje. Eu me sinto culpada até hoje. O Cuca [Luiz Carlos Becker Fleury Martins, filho de Cacilda com o primeiro marido, Tito Fleury Martins, e pai de Guilherme Becker], me diz que eu não tenho de me sentir assim, mas eu me sinto”, fala.
Dadá conta que, quando morreu, Cacilda já morava no apartamento duplex no Edifício Baronesa de Arary, na av. Paulista, bem ao lado do Parque Trianon e em frente ao Masp. “Morávamos ela, os filhos, Cuca e Maria Clara, eu e a cozinheira”, conta Dadá.
“A casa vivia cheia de gente, ela dava jantares, iam muitos artistas. Ela ensaiava as peças no andar de cima. ‘Navalha na Carne’ foi ensaiada lá”, recorda.
“Ela adorava teatro, mas ela gostava mesmo era de ficar em casa, quietinha, ou ouvindo as musiquinhas dela na sala ou passando texto”, conta. “Era amável com todo mundo, só não gostava de comer. Mas, quando comia, gostava de peixe”, revela.
Maria Thereza Vargas: “Cacilda Becker enfrentou a ditadura e quebrou preconceitos
Para a pesquisadora do teatro e biógrafa de Cacilda Becker Maria Thereza Vargas, 90 anos, a grande atriz “percorreu momentos importantes do teatro brasileiro no século 20”.
“Ela tinha uma personalidade abrangente, sempre se destacava em qualquer lugar onde estivesse. Não foi só atriz no palco, ela viveu o seu momento histórico e passou por ocasiões muito difíceis para a arte brasileira durante a ditadura militar, lutando contra a censura e a prisão dos artistas, entre eles a de sua irmã, Cleyde Yáconis”, conta.
Para Maria Thereza, Cacilda elevava o nível de interpretação a cada atuação. “Ela fazia de cada ato no palco um momento artístico. Estudava como ninguém uma personagem”, diz.
A pesquisadora define como “um grande impacto” a morte repentina de Cacilda: “Ninguém esperava por isso. Ela fez o primeiro ato e teve o aneurisma e nunca mais voltou”.
E reforça o pioneirismo da atriz, uma mulher que rompeu barreiras e quebrou preconceitos que ainda haviam com a profissão, enfrentando delegados e generais para salvar artistas da prisão.
“Ela veio de uma família modesta e começou muito jovem na profissão, combatendo os preconceitos. Ela dizia ‘todos os teatros são o meu teatro’. Ela ajudou muitos artistas que estavam sendo perseguidos na ditadura. Ela foi a uma audiência com o presidente general Castelo Branco e ele falou com ironia que ela tinha acordado cedo. Ela respondeu: ‘Não estamos aqui para brincadeiras, general’. Era uma mulher de pulso firme”, lembra.
“Cacilda falava muito bem e de maneira muito séria. O Paulo Francis, que era na época um crítico do Rio, dizia: ‘Lá vem a Cacilda Becker, falando, falando, achando que pode resolver tudo pelo simples ato de falar’. Quando ela morreu ele fez uma crônica belíssima sobre ela”, conta Maria Thereza Vargas.
A pesquisadora espera que os governantes se atentem da importância de Cacilda Becker e deem a ela o merecido lugar na memória de São Paulo e do país. “Ela merece um grande centro cultural com seu acervo”, fala, lembrando da fatalidade da vida do artista.
“A condição do ator é morrer mesmo. O momento em que ele está no palco interpretando vale mais do que a vida. Cacilda dizia que só era feliz no palco. E nele morreu”, finaliza.
Leona Cavalli, a atriz obcecada por Cacilda Becker
Leona Cavalli interpretou Cacilda Becker em “Cacilda!”, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, no Teat(r)o Oficina, em 1999. Desde então, nunca mais conseguiu se distanciar da personagem, tornando-se amiga íntima da família Becker.
“Eu li o livro da Maria Thereza Vargas ainda no Rio Grande do Sul, quando começava minha carreira de atriz. Fiquei encantada por Cacilda e jamais imaginaria que um dia Zé Celso me convidaria para interpretá-la, substituindo a Bete Coelho e a Giulia Gam, que também fizeram a personagem”, afirma.
“Para mim, a Cacilda significa o século 20 no teatro brasileiro. Reviver Cacilda é importante para entender a nossa história. Ela representa o teatro, uma classe”, discursa Leona que sonha poder interpretar Cacilda em um filme e em uma minissérie.
“É uma história que precisa ser contada para todo o povo brasileiro”, defende. “Ela criou uma forma de interpretação do teatro brasileiro. E deu importância à profissão de ator, de atriz no contexto social. Sou fascinada por Cacilda Becker. Leio qualquer coisa que sai sobre ela”, conta a atriz, antes de fazer uma revelação: “Estou preparando um documentário sobre Cacilda Becker. Essa história precisa ser contada”, adianta.
Ivano Lima: vida dedicada à memória de Cacilda Becker
Apaixonado por Cacilda Becker, de quem sabe todos os detalhes de seus 48 anos de vida, Ivano Lima passa os dias cuidando do acervo deixado pela atriz.
“Esse é o grande problema do Brasil, não sabe preservar sua memória. A Cacilda foi uma bandeirante. Ela abriu caminhos. Se jogava sem rede. Cacilda é vida em movimento e em transformação”, define.
Neto de Cacilda, Guilherme Becker diz: “É preciso difundir sua memória”
Para o neto de Cacilda Becker, o cineasta e ator Guilherme Becker, é preciso preservar e difundir sua memória. “Eu e o Ivano temos vontade de organizar uma exposição chamada ‘Irmãs’, sobre Cacilda Becker e Cleyde Yáconis, mas precisamos encontrar um patrocinador”, avisa.
“Também queremos transformar essa casa onde ela viveu aqui no Itaim Bibi em um espaço que possa reunir os artistas, tipo foi o Gigetto. Um lugar para os artistas virem depois das peças”, revela.
“Minha avó é a personalidade mais importante do teatro brasileiro. Ela abrigou em sua casa nomes perseguidos como Plínio Marcos e Paulo José. Ela ia na delegacia e mandava soltar todo mundo”, fala o neto.
Sobre o que pensa da possibilidade de a história da atriz virar um dia minissérie na Globo e um filme, ele diz: “Eu adoraria que isso acontecesse. A Leona Cavalli tem de interpretar minha avó e eu gostaria de fazer o papel do Walmor Chagas. Seria lindo: uma grande exposição, uma minissérie, um filme biográfico e o filme documentário da Leona. Seria lindo e minha avó merece isso”, fala.
Antes de se despedir, o neto de Cacilda Becker faz um pedido à reportagem: “Eu gostaria muito de encontrar o José Miguel Wisnik, que compôs a música ‘Cacilda’, gravada pela Maria Bethânia. Queria que ele e a Bethânia, a quem não conheço também, viessem aqui na casa da Cacilda. Porque essa música emocionou o Walmor e a mim também”, revela.
“O Wisnik conseguiu captar uma coisa muito interessante da minha avó, que é essa coisa dos lábios citados na canção que é a minha preferida. Pode colocar aí que os dois estão convidadíssimos, Bethânia e Wisnik, a virem jantar aqui na casa de Cacilda Becker”.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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