Crítica | Peça Macacos é grito de ‘até quando?’ para o racismo no Brasil

Por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Edson Lopes Jr.


“Moça, a bicicleta é minha”, diz o personagem jovem e negro no palco, na abertura da peça Macacos, atuada, escrita e dirigida por Clayton Nascimento e que abriu a segunda temporada do Teatro Vivo em Casa no último sábado (19). A frase, que reverberou na última semana, quando um jovem negro precisou justificar ser o dono da própria bicicleta ao ser interpelado por um casal branco que sugeriu que esta seria roubada, é comum neste triste Brasil. Na história que inspirou a cena, acontecida no Leblon, zona sul do Rio, depois, a polícia descobriu que foi um ladrão branco quem roubou a tal bicicleta, o que deixou ainda mais evidente o pensamento racista estrutural do casal.

Desvendar tal tipo de pensamento perverso parece ser uma das premissas do espetáculo Macacos, que se apropria no título do terrível xingamento historicamente utilizado para ferir pessoas negras. Para isso, a obra revê a história do Brasil a partir de uma nova perspectiva, que só reforça que a história é forjada pelos vencedores e, quase nunca, contada pelos oprimidos. Imerso na narratividade, o ator vai desconstruindo pensamentos racistas e mostrando, de forma didática, sua origem histórica, como forma de fazer o público refletir sobre o tema.

Veja como foi estreia de Macacos no Teatro Vivo em Casa

Clayton Nascimento em cena na peça Macacos no Teatro Vivo em Casa – Foto: Edson Lopes Jr. – Blog do Arcanjo

Dor que grita

Diante de tal proposta, Nascimento acerta no estilo de teatro escolhido, o épico-dialético, quebrando a quarta parede para tirar o público do conforto da ilusão. Na peça, há realidade de sobra e que grita para ser ouvida. Em muitos momentos, a obra se aproxima do teatro-jornal com o uso das recorrentes notícias de racismo estrutural e institucional que provoca morte de pessoas pretas, muitas vezes pelo próprio Estado, no que o espetáculo toma ares de denúncia contra o genocídio desta parcela da população.

Clayton Nascimento é um grande ator. Segura boa parte do espetáculo com uma energia em riste e um forte carisma. Em certos momentos, até mesmo foge da técnica e parece um ator “tomado” pelas tragédias de seus personagens, oferecendo seu corpo como uma espécie de cavalo para que o grito de dor do povo negro ecoe sem pudores estéticos.

Veja como foi estreia de Macacos no Teatro Vivo em Casa

Clayton Nascimento em cena na peça Macacos no Teatro Vivo em Casa – Foto: Edson Lopes Jr. – Blog do Arcanjo

Revisita histórica

Talvez pela necessidade tão grande de colocar em cena um discurso represado por séculos, e também por estar solo no comando da engrenagem, respondendo por atuação, direção e dramaturgia, Clayton Nascimento se exceda no tempo acordado com o público, fazendo com que o espetáculo-manifesto se prorrogue na revisita histórica.

O dramaturgo concede inclusive algumas licenças poéticas a si próprio, em nome da tentativa de síntese de tanta história em tão pouco tempo, como quando o texto coloca Carlota Joaquina expulsa do Brasil pela Proclamação da República de 1889, quando, na realidade, a monarca viveu no país entre 1808 e 1821, quando retornou, por vontade própria a Portugal, já que detestava o Brasil. Lá morreu, solitária, 1830. Na visão deste crítico, uma leve edição, feita por olhar de fora, poderia dar mais ritmo e força à já potente obra.

Veja como foi estreia de Macacos no Teatro Vivo em Casa

Clayton Nascimento em cena na peça Macacos no Teatro Vivo em Casa – Foto: Edson Lopes Jr. – Blog do Arcanjo

Até quando?

Contudo, o que realmente parece importar em Macacos é a reverberação do grito de dor do povo negro, vilipendiado ao longo da história brasileira. Em alguns momentos, tal grito se aproxima perigosamente do ódio da vingança, em contraponto a uma possível conciliação, não deixando luz no fim do túnel.

A tensão presente no espetáculo parece ser artimanha do artista para tirar o público do lugar de conforto e fazê-lo refletir, a fórceps mesmo, que é urgente a tomada de atitudes antirracistas no cotidiano, para que, só a partir daí, algo mude de fato. Afinal, a paz não pode ser apenas branca. Ao fim da peça, fica um gosto amargo na boca e uma pergunta que ecoa no cérebro do espectador sobre todas as terríveis situações apresentadas vividas cotidianamente por negros no Brasil: “Até quando?”.

Macacos, da Cia. do Sal, de Clayton Nascimento
Avaliação: Muito Bom ✪✪
Crítica por Miguel Arcanjo Prado

Veja como foi estreia de Macacos no Teatro Vivo em Casa

Clayton Nascimento em cena na peça Macacos no Teatro Vivo em Casa – Foto: Edson Lopes Jr. – Blog do Arcanjo
Clayton Nascimento em cena na peça Macacos no Teatro Vivo em Casa – Foto: Edson Lopes Jr. – Blog do Arcanjo
Clayton Nascimento em cena na peça Macacos no Teatro Vivo em Casa – Foto: Edson Lopes Jr. – Blog do Arcanjo

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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1 Resultado

  1. 21/06/2021

    […] paulistana de despedida do outono foi aquecida pela força do discurso antirracista do espetáculo Macacos, do ator Clayton Nascimento. Em sessão única, a obra apresentada em oito Estados e ganhadora de […]

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