Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Morreu o ator Roberto Francisco, aos 76 anos, nesta sexta (30), em São Paulo, vítima de falência múltipla dos órgãos. O artista passou mal nesta quinta (29) e precisou ser hospitalizado na UTI de um hospital paulistano, mas não resistiu. Segundo informou José Gabriel, que permaneceu ao lado de Roberto Francisco o tempo todo, o velório será neste sábado (31) às 12h30, para amigos e familiares, seguido de cerimônia de cremação às 13h30 na Vila Alpina, na zona leste paulistana.
Ator de sensível talento e doçura singular, Roberto Francisco deixa um legado de cinco décadas no teatro brasileiro, atuando em produções que fizeram história como O Balcão, dirigido pelo argentino Victor García; Macunaíma, histórica encenação de Antunes Filho, e O Incrível Mundo dos Baldios, direção de Rodolfo García Vázquez, um dos sucessos da Cia. de Teatro Os Satyros, que colocou o ator novamente sob os holofotes já no fim da vida.
“A morte do Roberto Francisco é uma enorme tristeza. Ele ensaiou com a gente até terça. Estava numa luta gigante”, conta o diretor Rodolfo García Vázquez. “Roberto era um operário do teatro. Na melhor acepção dessa palavra. Um trabalhador dedicado e extremamente devotado, culto e extremamente generoso. E o melhor amigo também. Vai fazer tanta falta…”, afirma o ator Ivam Cabral.
A notícia da morte do artista devastou o elenco da Cia. de Teatro Os Satyros, na qual ele era muito querido pelos colegas de elenco. O grupo está no set de filmagem de seu terceiro longa, The Art of Facing Fear (A Arte de Encarar o Medo), e souberam da morte do artista durante as gravações. “Estou destruído”, resumiu o ator e diretor Gustavo Ferreira, que o dirigiu ao lado de Rodolfo García Vázquez na peça Uma Canção de Amor, na qual Roberto Francisco atuava com Henrique Mello, em performance elogiada pelo público e pela crítica especializada. “Vamos manter o legado e o amor ao teatro que ele tinha”, complementou.
Henrique Mello, que tinha uma forte relação de amizade com Roberto Francisco, recebeu a notícia de forma dilacerante e está sendo amparado pelos amigos. “Vamos seguir o ofício de ser artistas que ele nos ensinou com tanta doçura”, afirmou Marcia Dailyn, atriz da companhia que contracenou com Roberto Francisco em O Incrível Mundo dos Baldios, em 2018.
Apresentação no Hollywood Fringe
Uma Canção de Amor, com texto de Jean Genet, direção de Gustavo Ferreira e Rodolfo García Vázquez, faria apresentação digital dia 15 de agosto no Hollywood Fringe Festival, em Los Angeles. No espetáculo, Roberto Francisco era um prisioneiro que tinha um envolvimento amoroso com outro detento bem mais jovem, vivido por Henrique Mello, em uma obra que discutia a quebra de preconceitos pelo amor.
No primeiro semestre deste ano, ele ainda atuou na versão digital da peça Pink Star, ao lado de um jovem elenco, sendo um dos artistas mais ativos do teatro digital durante a pandemia em 2020 e neste ano, dialogando de forma intensa com as novas gerações.
“Até a partida do Roberto Francisco foi poética. Fez e viveu a arte dele até os últimos dias”, afirmou o ator Rodrigo Barros. “Sua missão foi um exemplo, um espetáculo”, definiu o primo de Roberto Francisco, Antonio Carlos Gomes.
Henrique Mello: ‘Roberto Francisco deixou rastro de amor’
Bastante emocionado, o ator Henrique Mello escreveu o seguinte texto de despedida para Roberto Francisco: “‘Me promete que antes de partir desse mundo tomará o cuidado de não deixar nenhum rastro, nem uma vaga lembrança?’ Era essa pergunta que eu fazia ao Roberto no final do nosso espetáculo. E ao saber da partida dele, essa frase me veio a cabeça. Partir desse mundo sem deixar rastros, ato impossível de ser realizado por ele, que deixou um rastro de amor por onde passou. O mundo perdeu mais um pouco de delicadeza, arte e elegância com sua partida, e eu perdi um dos meus melhores amigos, que me ensinou que a vida só vale a pena, quando sorrimos pra ela, independentemente do quão próximos estamos da morte. Até um dia meu querido amigo. Obrigado por tudo.”
Gustavo Ferreira: ‘Roberto Francisco figura entre os grandes’
O ator e diretor Gustavo Ferreira também prestou tributo ao amigo e colega de ofício: “Hoje me despedi de um grande amigo, um grande ator, o amado Roberto Francisco. Que privilégio, que honra ter estado nos últimos anos ao seu lado, em diversos espetáculos no Satyros. No último ano, Robertinho se aventurou no teatro digital. Sempre muito disciplinado, era o primeiro a entrar nas salas digitais, tanto nos espetáculos, quanto nos ensaios. Aprendeu a mexer em aplicativos, mudar fundos, câmeras, tudo em um clique. O que pra muitos é quase impossível, pra ele foi mais um aprendizado a favor do teatro. Roberto figura entre os grandes, com uma biografia incrível. Na faculdade, enquanto estudava estética do espetáculo, e revisitava as fotos e relatos da montagem histórica de “O Balcão”, jamais imaginei que anos depois estaria ao lado de um ator daquele elenco, daquela peça…E de tantas outras, outras e outras….Desde que entrou no Satyros, com seu jeito doce, conquistou todos, que adoravam ouvir suas histórias madrugada a dentro. E ele, sempre muito humilde, dizia que era um aprendiz. Que ele estava aprendendo e trabalhando e isso o mantinha vivo. Em sua despedida, Gabriel, seu companheiro de vida por mais de 46 anos, confidenciou que na última quarta Robertinho só tinha uma preocupação: “Preciso falar com os meninos e com a Adriana, acho que temos que mudar uma marca em Canção de Amor, não sei se consigo ficar em pé durante tanto tempo naquela cena”. Isso mostra o carinho, o respeito e o amor que Roberto teve com teatro e com seus companheiros de ofício. Hoje, no velório, em sua última cena, Roberto estava sereno, coberto por pétalas e muita purpurina, para que continuasse brilhando. Brilha, Robertinho, brilha! Te amo.”
Rodolfo García Vázquez: ‘Roberto Francisco dialogava com todos os artistas dos Satyros sem arrogância’
O diretor Rodolfo García Vázquez também deixou seu depoimento sobre o artista: “Roberto Francisco entrou nos Satyros uns 4 anos atrás. Foi um encontro de almas. Ele veio trabalhar no nosso projeto com o Palacete dos Artistas. Convidamos para ele participar de um outro processo e, quase instantaneamente, se tornou um Satyro. Elegante, amoroso, talentoso, discreto e apaixonado pelo seu ofício. Uma memória ambulante do teatro de São Paulo. Participou de trabalhos históricos, como O Balcão de Victor García e Macunaíma. Nunca o vi falando mal de nenhum artista. Nunca vi Roberto reclamar da sua doença. Nunca vi ele desmerecer ninguém. Nunca vi ele reclamar de uma cena ou proposta. Dialogava com todos os artistas dos Satyros sem arrogância, por mais que tivesse uma biografia incrível. Sempre disponível e gentil. Nunca usou da sua idade para manipular ou exercer poder sobre os mais jovens. Nos últimos ensaios, se queixava muito delicadamente de suas dores e limitações. Não se vitimizava. Um exemplo pra mim. Uma perda. Uma dor no coração. Uma honra ter tido você como parceiro. Roberto, você vai fazer muita falta.”
Leia reportagem com Roberto Francisco em 2019
Roberto Francisco rejuvenesce no Satyros para celebrar 50 anos de carreira
Por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Edson Lopes Jr.
26 de junho de 2019
Artista histórico de nossos palcos, Roberto Francisco, 74, anda se sentindo outra vez um menino. O ator celebra seus 50 anos de carreira com a peça “Uma Canção de Amor”, que estreia em São Paulo neste domingo (30) no Espaço dos Satyros Um [veja serviço ao fim].
Quando criança, Roberto era fascinado pelo Circo-Teatro. Levado pelo pai, se encantava não só com os números de circenses, mas, sobretudo, com o que vinha depois: o teatro.
“Sou antigo, quando nasci ainda estava tendo a 2ª Guerra Mundial”, fala Roberto em entrevista exclusiva ao Blog do Arcanjo, revelando que nasceu em 31 de outubro de 1944, “em pleno Dia das Bruxas”.
Circo e teatrinho de gaveta
Na plateia do Circo-Teatro do Simplício, icônico artista circense brasileiro, os olhos do menino brilhavam diante dos personagens. Mas, quando voltava ao bairro paulistano da Mooca, onde vivia com o seus pais, os filhos de imigrantes italianos Salvador Francisco, um taxista que depois fabricou tamancos e panelas de alumínio e a dona de casa Ilva, Roberto só pensava em uma coisa: reproduzir o que tinha sentido.
“Tinha vários amiguinhos que não tinham dinheiro para pagar o ingresso do circo. Então, chegava em casa e tirava uma gaveta da cômoda da minha mãe, cortava figuras da revista O Cruzeiro e chamava os amiguinhos para assistirem eu fazendo a peça outra vez para eles. Botava a gaveta de pé e ia contando a história que havia visto no circo. Era meu teatrinho”, recorda.
Em “Uma Canção de Amor”, atua com Henrique Mello, autor da dramaturgia ao seu lado baseada na obra do francês Jean Genet e na vida dos dois, sob direção de Gustavo Ferreira e Rodolfo García Vázquez [veja serviço ao fim]. “O Henrique é um ator muito cabeça, gentil e talentoso, trabalhar com ele é um prazer”, elogia.
Do teatrinho de gaveta para os palcos de verdade foi um pulo. “Na adolescência, comecei a fazer teatro amador na Escola Estadual M M D C, na Mooca. Era diretor cultural do grêmio estudantil e fiz um grupinho com quem curtia teatro. Sempre apresentávamos em 15 de outubro, Dia dos Professores. Como a escola era ao lado do Teatro Artur Azevedo, fazíamos um grande espetáculo lá, com teatro e música”, recorda.
Aulas na USP
Quando chegou a hora do vestibular, resolveu prestar para cinema. “Fiz a Escola de Comunicações e Artes da USP. Entrei em 1968, na mesma turma que a Regina Duarte, que sempre me dava carona da Cidade Universitária até o Parque Dom Pedro II”, rememora.
Dos tempos universitários, lembra com carinho das aulas de Paulo Emílio Salles Gomes, um dos maiores críticos de cinema do país: “Como já fazia teatro, resolvi estudar outra coisa na universidade, então, fiz cinema na ECA, mas depois voltei para o teatro, aliás, nunca o deixei”.
Primeira grande chance: “O Balcão”
A primeira peça adulto como profissional foi em 1969. E tratava-se simplesmente de um marco que revolucionaria o teatro brasileiro: “O Balcão”, com texto do francês Jean Genet, direção do argentino Victor García e produção de Ruth Escobar no teatro que leva seu nome na Bela Vista. Antes, havia feito os infantis “Dona Patinha Vai ser Miss” e “Pop, a Garota Legal”, no mesmo ano.
“Estava no Teatro de Arena fazendo ‘Pop, a Garota Legal’, e o Marcelo Coutinho, que fazia a sonoplastia e também atuava em ‘O Balcão’, me disse que a Ruth Escobar estava precisando fazer uma substituição. Estreei no fim de 1969, eram oito sessões por semana. Comecei como um revolucionário, quase coro. Um dia, a Ruth me chamou e falou: vou te dar uma fala. E daí fui passando por todos os papéis ao longo da temporada até chegar ao Roger, que é um dos principais personagens, que também foi feito pelo Carlos Augusto Strazzer e o Marcos Weinberg”.
Enterro concorrido e Antunes Filho na Europa
Roberto conta que, como chegou em “O Balcão” com a peça já pronta, acabou não tendo contato com o diretor argentino. “Ironicamente, eu não tive contato com o Victor García, só fui ir ao seu enterro em 1982, em Paris, onde estava então em cartaz com ‘Macunaíma’ e ‘O Retorno de Nelson Rodrigues’”, ambas sob direção de Antunes Filho.
“No enterro do Victor García estavam o Jean Genet, o Fernando Arrabal… A gente olhava e falava: ‘Meu Deus do céu!’ Era o teatro mundial inteiro naquele enterro”, recorda. “Ficamos oito meses representando o teatro brasileiro na Europa, o Antunes não dava folga”, lembra.
Moradia no Palacete dos Artistas
Roberto fez de tudo nos últimos 50 anos. Algumas pontas em televisão, um pequeno papel no filme “A Moreninha”, com Sonia Braga e, sobretudo, teatro, como o infantil “O Aniversário do Palhaço”, que ficou 25 anos em cartaz, além de lecionar artes em escola pública.
Fez peças grandes e pequenas, enfrentou dificuldades financeiras, se reinventou várias vezes e, há cinco anos, foi morar no Palacete dos Artistas, onde está o que chama de “sua família do teatro”: “É um lugar que acolhe o artista mais velho com muito carinho”, pontua.
Redescoberto pelo Satyros
Roberto conta que conheceu Rodolfo García Vázquez quando o diretor do Satyros foi fazer uma ação cultural com os moradores do Palacete dos Artistas, residência pública para artistas na terceira idade na av. São João, no centro paulistano. “Foi quando conheci não só o Rodolfo como também o Henrique, que fazia assistência de direção para ele e hoje está na peça comigo”, fala.
“Sempre continuei com o teatro, faço até hoje, aos 74 anos. Nunca parei. Todos os anos da minha vida eu fiz teatro. Até chegar agora no Satyros, o que para mim foi um prêmio”, avalia.
“Quase um ostracismo”
E explica por quê. “Durante muito tempo fiquei fazendo teatro longe do centro de São Paulo, onde as pessoas têm dificuldade de chegar. Então, fiquei um pouco meio que no ostracismo. Claro que as pessoas que fizeram teatro comigo se lembram de mim, mas eu fiquei muitos anos sem ter visibilidade. Quando eu vim para o Satyros, isso mudou”, aclara.
E diz que no grupo faz questão de ser tratado como os demais: “A primeira coisa que falei foi: não me respeitem pelos meus anos de idade. Eu estou aprendendo com vocês”. Quando fez a peça “O Incrível Mundo dos Baldios” em 2017 com os Satyros, mudou muitas perspectivas.
Momento atual: fôlego juvenil recuperado
“No começo, fiquei assustado com a direção do Rodolfo, porque não tinha texto inicialmente, e eu estava acostumado a começar uma peça com o texto na mesa. Eu ficava apavorado! Mas, depois, compreendi a força daquele processo e o texto do Ivam Cabral e do Rodolfo García Vázquez foi chegando com tudo”, afirma. “Também fui vendo as direções do Gustavo Ferreira, e falei que gostaria de ser dirigido por ele um dia. Agora, os dois juntos nos dirigem em ‘Uma Canção de Amor’”, celebra.
Às vésperas da estreia, Roberto fala que sente-se jovem outra vez, que rejuvenesce fazendo teatro no Satyros. “Estou aprendendo tudo de novo. É como recomeçar do zero, mas ao mesmo tempo me faz lembrar também o meu começo”, revivendo o mesmo furor que sentia com o seu teatrinho de gaveta. “Estou me sentindo como naquela música [começa a cantarolar]: ‘Eu vou voltar aos velhos tempos de mim’…”
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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