Crítica | G.A.L.A. de Gerald Thomas arrebata Festival de Curitiba com auge de Fabiana Gugli

Grande performance: Fabiana Gugli em cena de G.A.L.A., de Gerald Thomas, que conquistou o público no 30º Festival de Curitiba – Foto: Annelize Tozetto – Blog do Arcanjo

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo

O idealizador do Festival de Curitiba, Leandro Knopfholz, é um cara do mundo, vivido e experimentado, que sempre encarou seu evento como cosmopolita, rejeitando qualquer tipo de provincianismo ao mesmo tempo que jogou holofotes constantes a quem contribuiu para a trajetória de 30 anos de sucesso do maior festival das artes cênicas na América Latina.

Tendo isso em mente, faz todo o sentido que o diretor Gerald Thomas tenha sido o escolhido para abrir o 30º Festival de Curitiba na noite desta terça (29). O reencontro presencial foi no tradicional palco do Guairinha, com sua plateia de elegantes poltronas de veludo vermelho, repletas de um público que misturou versados e novatos no diálogo com o famigerado diretor.

O nome da nova obra de Gerald Thomas não poderia ser mais propício: G.A.L.A., uma espécie de monólogo surreal tropicalista direto do caos protagonizado por Fabiana Gugli, em atuação digna de ser premiada. O título também homenageia a mulher e musa do pintor surrealista Salvador Dalí.

Gerald Thomas posa para o Blog do Arcanjo no palco do Guairinha momentos antes da estreia de G.A.L.A no 30º Festival de Curitiba – Foto: Annelize Tozetto – Blog do Arcanjo

Referência do pós-dramático

Ícone do teatro pós-dramático no Brasil da década de 1990, mesma época em que começou o Festival de Curitiba, onde esteve na primeira edição, Gerald Thomas sabe como ninguém construir imagens de alto impacto e pura sensibilidade, dividindo com o público a busca incessante por sentido.

A sensação ao ver a nova peça de Gerald Thomas continua a de se estar diante de um quadro vivo, tamanho domínio das nuances de cores e luzes. E da beleza do fazer teatral.

E, se os olhos estão satisfeitos, os ouvidos, também. Gerald Thomas possui refinado e sarcástico texto, onde sobram alfinetadas e referências por todos os lados, que vão da brasilidade do “coentro no feijão” à literatura pop de Paulo Coelho ou a canção Satisfaction dos Rolling Stones, ainda recordando o medo asfixiante na pandemia. Aliás, o espírito da obra de Gerald Thomas, como evidencia boa parte de sua trilha, é essencialmente rock’n’roll garage.

Náufrega sem saída, com uma mistura de nostalgia e rechaço de um tempo que já passou, a personagem de Fabiana Gugli é um alterego do próprio diretor e dramaturgo. Ela dá vida a uma artista sob o infortúnio do naufrágio e que evoca o démodé dos velhos tablados e seus nomes icônicos, que soam como peças de um moribundo museu em um mundo algoritmado na velocidade do bitcoin e da dancinha do TikTok.

Realmente, as novas gerações não parecem muito preocupadas com Beckett, Walmor ou Cacilda. E só são capazes de rir se houver algum palavrão ou referência sexual na frase. E não há muito que se possa fazer em relação a isso. Tal desalento leva a personagem a um alto grau de desespero, num diálogo constante que busca justamente quem ainda lhe preste alguma atenção. Ou compreenda sua mensagem.

Fabiana Gugli faz performance dinga de ser premiada em G.A.L.A., a nova peça de Gerald Thomas que hipnotizou o 30º Festival de Curitiba – Foto: Annelize Tozetto – Blog do Arcanjo

Uma atriz no auge

Em seu auge, Fabiana Gugli demonstra domínio coeso das matizes emocionais de sua personagem. E se joga de cabeça em cada uma das cenas oníricas propostas por seu diretor. A atriz quebra pratos com veemência e, logo depois, torna-se dócil e carente, com a velocidade de troca atmosférica que só as grandes intérpretes conseguem. Com G.A.L.A., Fabiana Gugli se firma como uma das atrizes mais importantes de sua geração no teatro brasileiro.

Engenhoso e atento ao aqui agora, Gerald Thomas trouxe para sua estreia de Curitiba a síntese do tempo, tão necessária a este mundo cada vez mais impaciente, fazendo seu espetáculo durar menos de uma hora. Ele ainda assimila temas quentes do momento, no que é perceptível a herança de outro grande encenador obcecado como aqui e agora: Zé Celso.

Desalento sem fim: personagem de Fabiana Gugli está desonforme com os rumos do mundo e do teatro na atualidade em G.A.L.A., de Gerald Thomas – Foto: Annelize Tozetto – Blog do Arcanjo

Ponte no tempo-espaço

O diretor atualiza a Guernica de Picasso e cria a ponte no tempo: “Agora é a Ucrânia”, concluiu no palco Fabiana Gugli. Ou quando a personagem, já no fim do espetáculo, pergunta: “Tapa? Uma loucura! Will Smith, sério?”, fazendo referência ao episódio de agressão envolvendo o ator Will Smith e o humorista Chris Rock, que marcou a noite do Oscar menos de 48 horas antes da estreia da peça em Curitiba e sobre o qual (quase) todos opinaram.

Comunicando-se com o imaginário Sancho por telefone, evocando a peça Dias Felizes, de Beckett, o dramaturgo a certo momento define seu Sancho como sendo “sua mulher”. Assim, Fabiana Gugli – ou Gerald Thomas — se assume como um Dom Quixote errante nestes fugazes tempos contemporâneos altamente digitalizados.

Resta saber se a mão, que surge como fio de esperança ao fim do espetáculo, é uma ajuda concreta ao anti-herói à deriva ou apenas um delírio momentâneo e efêmero. Como o é o próprio Festival de Curitiba. E é justamente aí que mora a beleza do teatro.

G.A.L.A.

Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪
Crítica por Miguel Arcanjo Prado

O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Festival de Curitiba.

Detalhe da cenografia de G.A.L.A., de Gerald Thomas, que abriu o 30º Festival de Curitiba fortemente aplaudida pelo exigente público do evento – Foto: Annelize Tozetto – Blog do Arcanjo

+ Blog do Arcanjo no Festival de Curitiba!

Editado por Miguel Arcanjo Prado

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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