Crítica | Águas Selvagens e as molduras que iluminam o centro, por Marcio Tito
Por Marcio Tito
Editor do site Deus Ateu, especial para o Blog do Arcanjo
Estudos acadêmicos e outros projetos atravessam e revisam as pautas da sociedade, cada qual a seu modo, cada qual segundo um universo particular de características e pré requisitos. É natural e bom que seja assim. Contudo, a arte, este panorama de significados que se erguem para narrar, nos contar e nos mostrar o mundo, via de regra, emerge com maior e mais legítima autoridade quando o assunto precisa ser rapidamente transmutado em signo e símbolo que nos dê acesso ao desastre do real (de maneira poética, documental ou metafórica).
Águas Selvagens, o cruel retrato das mazelas de um capitalismo atrasado e de terceiro mundo, filmado em dois idiomas e com equipe binacional, aponta com vigor retratista ao centro de questões que, em forma de filme, distante da teoria das supracitadas áreas, torna desconfortável o assento e nos faz perceber na sala de projeções um burburinho tão autêntico quanto condoído e espantado.
Não parece justo enquadrar a obra como “filme nacional”, visto que o cinema brasileiro tem, dia após dia, apresentado obras cujo valor frequenta diversos estilos, formatos e estéticas, logo, essa antiga denominação para filmes brasileiros, diante das atualizações do formato, pode vir a turvar a realidade do nosso movimento audiovisual. Assim, “cinema nacional”, este quase bordão que ja se definiu pela conjugação de um mesmo formato em variadas circunstâncias, hoje, sobretudo diante de produções como Águas Selvagens, é museu.
O filme, que nos entrega grande elenco e é protagonizado por Roberto Birindelli, apresenta forte influência Argentina, sobretudo na delicadeza do roteiro que não se lança ao desejo de ser um clássico do formato, e, com natural disposição, caracteriza-se pela determinada confirmação de um renovado expediente do audiovisual e dribla os formatos mais populares ou demasiadamente inscritos em um sem fim de efeitos visuais ou fabulações obstinadas em não perceberem o Brasil profundo.
O filme, dirigido por Roly Santos e roteirizado por Oscar Tabernise, com investimento brasileiro — em coprodução da curitibana Laz Audiovisual, de Rubens Gennaro e Virginia de Moraes e da portenha Romana Audiovisual, com colaboração da também argentina De La Tierra Productora e distribuição da Imagem Filmes — e elenco misto com atores argentinos e uruguaios, apresenta um enredo que prefere emergir apenas a estruturas e os pontos essenciais da trama (para que as informações entreguem somente o suficiente, e não uma longa ou determinista opinião acerca das questões da obra).
Assim, sem precisar confirmar uma tese exageradamente clara, e alimentado pelas energias essenciais do roteiro, o elenco encontra profícuo terreno na hora de trabalhar e criar partituras sofisticadas e radicalmente permeadas por universos interiores que iluminam as bordas do filme e dão as cores das sensações que sobreviverão após a última cena.
Elenco que faz a diferença
Juan Manuel Tellategui, Leona Cavalli e Mayana Neiva são a moldura que empresta ao elenco central uma sólida e coesa estrutura pautada por tipos e interpretações cuja tônica está em mostrar aquelas personagens sempre um instante antes de alguma grande ebulição, enquanto as personagens centrais, mais inscritas na deriva dos fatos, aparecerão sempre arrasadas por alguma tragédia ou dor anterior.
No tempo do filme, no desencadear das narrativas, as personagens centrais são o produto de debacles anteriores, enquanto o trio que circunda estas figuras está, com ótimas interpretações, situado um instante antes da derradeira tormenta. Essas personagens, que aqui destaco, caracterizadas por silêncios eloquentes, parecem organizar dentro da obra um grupo de força e eficiência, e é bastante interessante perceber como seus ápices são construídos com firme e elegante adrenalina.
Juan Manuel Tellategui, que também tem sólida formação nas artes do palco e outros longas no currículo, organiza com sofisticada retidão uma curva dramática que nos impressiona conforme modula suas variações e enigmas, fazendo surpreendentes seus dois decisivos pontos de virada na trama.
Leona Cavalli, outra veterana do teatro e das telas, constrói seus silêncios apoiando a força de sua dor naquilo que não está enunciado em texto. Este universo de poucas palavras e muitos olhares transpassa cada uma de suas cenas e a torna figura essencial, mesmo sendo aproveitada em poucas cenas da produção.
Mayana Neiva, com papel mais presente, porém também inscrita nas sensações que circundam o protagonista e a trama, constrói, em conformidade com os tons acima elencados, e encontra seu ápice quando organiza com metódica energia as saídas e contrastes de sua personagem.
A ideia de um thriller que se passasse no Brasil, mas tivesse parte de seu mistério na tríplice fronteira e na Argentina, ganha por tratar seus eventos de maneira quase nunca explicitada perante os espectadores, e assim, entregando seus pontos escuros para quem puder melhor imaginar seus caminhos e desenlaces, a obra se confirma.
Tellategui, Cavalli e Neiva acertam quando se tornam figuras motoras na hora em que obra entrega ao público um caminho solidificado em um resoluto suspense. É, de certo, um dos grandes acertos da direção; saber emprestar protagonismos e eleger atores e atrizes econômicos e intensos em suas construções.
Protagonista com proposta densa
Roberto Birindelli, o citado protagonista da obra, na pele do detetive Gualtieri, também articula uma densa e contida proposta de cena que, equalizada com a direção direta e o roteiro enxuto, termina por nos transportar ao seu drama. Sua narrativa pessoal, de sujeito com passado expressivo, é abafada pela macro situação do filme. Birindelli joga com oportuna experiência entre uma e outra situação. E poder-se-ia dizer que sua força é o esteio capaz de manter o roteiro, do começo ao fim, centrado em sua própria dinâmica de rotação.
Em um misto entre profundezas e superfície, a cada instante revelando sua trajetória, o filme não se confunde pela renovação dos mesmos pontos, mas se eleva com certo sobrevoo reiteradamente capaz de situar, por variados prismas, a multiplicidade de boas texturas dentro da mesma história. De modo geral, com decisão e marcante efeito da direção, o filme é bastante positivo por seu acabamento, mas sobretudo pela acertada escolha de um elenco e equipe que, em todos os níveis, fez as escolhas menos óbvias para filmes de gênero.
Vale ressaltar a sua relevância social e a sua postura respeitosa diante do delicado tema do tráfico humano e da exploração sexual de menores. Águas Selvagens, do original Águas dos Porcos, é o acertado conjunto de boas escolhas (em um contexto que poderia borrar-se por completo, caso não resistisse ao centro da obra uma oportuna postura estética e ética. Neste contexto, assim como parece determinante a presença de um elenco que fez toda a diferença, também se ergue como essencial a dinâmica visual e sonora aplicada; fazendo ver não somente um recorte temático, mas algumas balizas capazes de orientar o nosso olhar aos dolorosos estertores do mundo real.
*Marcio Tito é dramaturgo e diretor teatral, além de editor e entrevistador no site Deus Ateu. @marciotitop
Nota do Editor: O filme policial Águas Selvagens, longa em coprodução Brasil e Argentina, estreia em cinemas de 16 cidades brasileiras nesta quinta, 12 de maio, em salas de São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Curitiba, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Maceió, Ribeirão Preto, Jundiaí, Campinas, Barueri, Santa Maria, Niterói e Maringá. Em São Paulo, o filme está nas seguintes salas: Cinepolis Jardim Pamplona, Espaço Itaú Augusta, Espaço Itaú Frei Caneca,
Espaço Itaú Pompeia, Reserva Cultural SP, Kinoplex Itaim, CineSistem Morumbi, UCI Jardim Sul, Belas Artes.
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Águas Selvagens
Sinopse
Quando o investigador Lúcio Gualtieri (Roberto Birindelli) aceita um trabalho para solucionar um crime cometido na fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, ele se vê perseguido por uma organização criminosa envolvida em uma trama macabra de assassinatos. Ao descobrir uma verdade obscura que coloca em prova todas as suas crenças, o ex-policial precisará enfrentar seu passado conturbado, enquanto tenta sobreviver aos perigos dessa zona de águas selvagens. Duração: 1 hora e 48 minutos.
Ficha Técnica
Diretor: Roly Santos
Argumento: Oscar Tabernise
Roteiro: Oscar Tabernise
Trilha Sonora Original: Eduardo Zvetelman
Diretor De Fotografia: Vinicius Gennaro
Montador/Editor De Imagem: Sergio Zottola
Diretor De Arte: Magno Vitor Ferreira
Técnico/Chefe De Som Direto: Diego Vinicius Ribas Tolardo
Mixador De Som: Hernán Ruiz Navarrete
Produtores Executivos: Virginia W Moraes, Rubens Gennaro, Beatriz Gennaro
Elenco
Roberto Birindelli, Mayana Neiva, Daniel Valenzuela, Leona Cavallli, Juan Manuel Tellategui, Allana Lopes, Nestor Nuñez, Luiz Guilherme, Mausi Martínez, Mario José Paz, Anastácia Custódio e Giuly Biancato.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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