Crítica | Coro talentoso é força motriz do musical Chicago e eclipsa protagonistas
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Mora no coro a força motriz da versão do musical Chicago encenada no Teatro Santander, em São Paulo, até este domingo, 29 de maio de 2022.
São os hábeis atores-bailarinos que mantêm em riste o ritmo e o fogo da montagem, roubando praticamente todas as cenas das quais participam e deixando saudade quando não estão no palco.
Amparados por vigorosa orquestra, que permanece em cena, o time executa, com precisão absoluta, as geniais coreografias de Bob Fosse – ponto nevrálgico do espetáculo –, repletas de mãos bem delineadas e corpos que dominam o equilíbrio, tornando o aparentemente simples algo gigantesco.
Antes de qualquer outra consideração, o ensamble precisa ser citado um a um: Alberto Venceslau, André Luiz Odin, Estela Ribeiro, Esther Arieiv, Fernando Rocha, Gabriel Malo, Gabriela Germano, Guilherme Pereira, Hellen de Castro, Marcelo Vasquez, Mari Rosinski, Mariana Barros, Moira Osório, Nay Fernandes, Rodrigo Garcia, Vitor Loschiavo e Ygor Zago.
O musical de 1975, de John Kander e Fred Ebb com dramaturgia e coreografias já elogiadas do grande Bob Fosse, se concentra, prioritariamente na história de suas duas protagonistas, Roxie Hart e Velma Kelly, respectivamente Carol Costa e Emanuelle Araújo, duas estrelas do crime que utilizam as páginas do jornalismo policial para alcançar sua torta fama. Ambas se veem eclipsadas pela juventude que não cansa de chegar. O pano de fundo é a rixa entre gerações femininas, onde a novidade sempre desperta todas as atenções midiáticas.
A morena Velma Kelly é vivida por uma esforçada Emanuelle Araújo, cantora com farta trajetória na música e na televisão, onde já desempenhou papéis de destaque, mas ainda estreante no exigente e absolutamente técnico mundo dos grandes musicais. Apesar de sua autêntica e corajosa entrega ao desafio, é perceptível que Emanuelle ainda tem certo caminho a percorrer, sobretudo no quesito dança, algo fundamental neste espetáculo, que exige memória de treino corporal de décadas em seus intérpretes.
Mesmo quando canta All That Jazz, verdadeiro hino do cancioneiro norte-americano com sucesso global, Emanuelle não consegue chegar no vigor que sua personagem pede nesta cena fundamental ao espetáculo. A sensação é que ela quase chegou lá.
Ao seu lado, na dupla protagonista, na pele da loira fatal Roxie Hart, está Carol Costa, atriz que saiu dos coros para brilhar como estrela de grandes musicais, recentemente premiada com o Prêmio Bibi Ferreira por sua excelente Chiquinha, em Chaves, Um Tributo Musical. Na dupla que é chamariz no cartaz, Carol é quem mais brilha, sobretudo por ter mais domínio técnico da dança.
Quando ela e Emanuelle estão juntas, é evidente o descompasso técnico entre uma e outra. Em alguns momentos até fica a dúvida neste crítico se Carol está sendo generosa, e entregando menos, para não prejudicar sua colega, o que no fim torna o musical morno, como é o número final da dupla.
Chicago é inspirado na dramaturgia de Maurine Dallas Watkins, feita em 1926 a partir de uma reportagem que narrava crimes de duas mulheres que mataram seus maridos na violenta Chicago, a cidade sem lei naquele então 1924.
O espetáculo se destaca ao expor como o jornalismo-espetáculo da cobertura de crimes, algo que impera até hoje – vide programas como Cidade Alerta e Brasil Urgente –, integra o sistema de fabricação de criminosos-estrelas para hipnotizar as massas.
No contexto do começo do século 20, a figura feminina associada ao crime ainda era novidade que despertava atenções, ódios e desejos. E é nisso basicamente que a montagem se concentra.
Para além da estreia original na Broadway em 1975, foi a versão de 1996 que colocou novamente Chicago no mapa, com o musical ganhando prêmios e tornando-se posteriormente filme em Hollywood.
Se no teatro nova-iorquino e no cinema as protagonistas roubaram a cena, nesta atual montagem brasileira, como isso não é possível, é o coro quem brilha. No time coadjuvante, Lucas Cândido, ator sempre potente, também se destaca em papel feminino, como a colunista sensacionalista.
O restante do elenco principal não mostra a que veio. É impressionante ver como uma atriz potente como Lilian Valeska não consegue chegar ao que pede sua Mama, líder da cadeia feminina para onde vão as protagonistas, personagem que tinha tudo para ser divertida, irônica e roubar a cena, mas neste musical é feita de forma burocrática e insossa.
Outro que não alcança brilho com seu personagem, se perdendo em uma canastrice óbvia, é Paulo Szot, único ator brasileiro que conquistou o feito de ganhar um prêmio Tony na Broadway e de quem se esperava muito mais.
Contudo, nada se compara em nível de descompasso a Eduardo Amir como o inseguro Amor Hart. O ator está em um registro mais próximo ao teatro escolar do que o de um grande musical, o que o coloca em outro planeta diante do espetáculo no qual atua.
Causa impressão que a direção de uma superprodução como essa, assinada por Tânia Nardini, não tenha percebido e corrigido tais problemas. Fica até a dúvida se não teria sido uma escolha da direção deixar seu elenco protagonista em ponto morto.
Assim, Chicago é um musical sem viço e sem brilho, a não ser quando seu coro entra em cena para recriar com perfeição as lendárias coreografias de Bob Fosse. Ver tais artistas executarem de forma primorosa cada passo evidencia que o talento não tem a ver com posto de protagonista. É preciso também elogiar o virtuosismo dos músicos da orquestra, sempre em cena, em uma cenografia épico-brechtiana.
Em Chicago, a linha de fundo torna-se linha de frente, com o coro como principal razão para o público sair de casa e assistir a este espetáculo musical.
Chicago, o Musical
Avaliação: Bom ✪✪✪
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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