Crítica | Azáfama, Substantivo Feminino cria catarse com mulheres que encenam em coro triunfante ✪✪✪✪
Azáfama, Substantivo Feminino
Avaliação: Muito Bom ✪✪✪✪
Crítica por Marcio Tito*
Especial para o Blog do Arcanjo
Azáfama, Substantivo Feminino, espetáculo escrito e dirigido por Bruno Narchi e com direção musical de Gui Leal e Thiago Machado, apresenta uma série de revisões e releituras que situam o espetáculo em um sólido “não-lugar” capaz de representar, de modo dialético, tempos, culturas, civilizações e dores tão ancestrais quanto potencialmente contemporâneas e futuras.
Teatro de grupo, mítica, ritual, lendas e gira se misturam com efeito performativo. Contudo, de modo geral, resiste em cena uma bem-vinda teatralidade bastante objetiva e obstinada em, ainda que dentro de diversos experimentos clássicos, renovar o uso da cena e entregar ao movimento do coro boa parte das soluções visuais e sonoras necessárias — ficamos confortavelmente entre um contação narrativa e épica dos eventos e, durante as canções, dentro de uma subjetiva e catártica experiência acerca dos fatos.
Sua estrutura de conjuntos narrativos, que se encontram em ilhas de força quando a cena exige foco e boa definição, aquartelando intérpretes, luz, som e adereços em uma só direção, com bem orquestrada e clara partitura estética, é a maior e mais positiva estratégia encontrada pela encenação.
Um espetáculo que anunciadamente articula fórmulas de conquista de poderes e também a contestação de poderosos, quando desenha na cena matemáticas capazes criarem contextos equivalentes às metáforas então representadas, ganha em autocrítica quando dispara jogos e soluções cênicas capazes de entregarem legendas objetivas e adequadamente pedagógicas.
Este supracitado triunfo da encenação e da obra, de modo geral, também recebe a vivaz e aguerrida participação de um elenco coeso e sempre dois graus acima do que já nos exigiria uma boa sequência de aplausos em cena aberta — e fica a impressão de que a plateia evitou aplaudir repetidas vezes porque tantas interrupções poderiam desmembrar o enredo.
Contudo, ainda com certa economia por parte do público, alguns números não passaram despercebidos e enérgicas manifestações de agrado e gozo, por parte dos e das espectadoras, tomaram o espaço e a cena com muita naturalidade.
Sagrado feminino
Se o título deste raciocínio entrega certa pista em direção ao trabalho da psicóloga e escritora Clarissa Pinkola Estés, autora do clássico Mulheres Que Correm Com Lobos, aproveito este parágrafo para, de fato, pontuar a citação e revelar parte do caminho que percorri até unir nas ideias um claro diálogo entre as duas produções (o livro e a peça).
Falar do sagrado feminino, no contexto de mulheres sagradas e guerreiras, conscientes da opressão e capazes de articularem uma resposta em forma de ação, de certo, nos faz rememorar os melhores momentos da recente revisão feminista acerca da história dos corpos femininos dissidentes — como a recontação historiográfica do surgimento das lendas sobre “bruxas” no ocidente, ou como a recontação do arquétipo das mulheres “fiandeiras” ou que, como nas mitologias grega, africana e celta, ataram e desataram nós de sabedoria frente aos olhos de deuses e homens tão valentes e poderosos quanto cegos por vaidade, soberba, machismo e arrogância.
Azáfama, Substantivo Feminino parece observar com parcimônia os limites da conjuração do sagrado feminino em cena (entregando também uma narrativa capaz de melhores e mais claros acordos, do ponto de vista teatral, uma vez que também inclui em sua fábula desencontros e tropeços que humanizam as personagens e suas trajetórias).
Talvez por isso, com bastante delicadeza e por meio de uma clara aposta no carisma das atrizes Letícia Soares, Helena Lazarini, Juliana Bógus, Larissa Carneiro, Thaís Piza, Pamella Machado, Leilane Teles, Giovanna Moreira e Zuba Janaina, a peça estabeleça um acertado teatro popular e se mostre capaz de receber em suas proposições todos os formatos de público. Neste contexto, comprovando o acerto da estética escolhida, as urgências e pautas do público parecem gradualmente sanadas conforte a cena se desenrola e o texto evolui.
Emociona que o objetivo das personagens perca o controle e desague em uma tragedia tão imprevisível quanto incontrolável. É uma ruptura do sucesso e também momento qual, já poderosas, já empoderadas, as personagens de fato lidam com as forças do real e, diante dele, se veem feridas até que o sangue derramado sirva enquanto alerta: viver não é fácil, acordos importam, liberdade custa caro e vamos à luta!
Curiosamente, porque transcende o que mais corriqueiramente acompanhamos na cena teatral, a força da montagem resiste na produção de contradições. Com certo grau de combate, porque várias perspectivas disputam espaço no discurso, a boa dramaturgia entrega um prático, realista e intenso feminismo próximo e distante aos exemplos mais difundidos nas redes sociais.
Contudo, outra vez popular, o eficiente teatro de pesquisa que o coletivo Nosso Projeto desenvolve faz caber em seu formato uma vertiginosa pluralidade de visões (e é justamente este o acréscimo de sentido que faz a montagem ganhar em bom senso e unidade).
Este oportuno e metódico diálogo entre dissonâncias garante que o espetáculo não se perca em uma encenação ensimesmada (assim como também ressalva as tematizações, fazendo com que o espetáculo escape ao turno de uma palestra puramente expositiva).
Suficientemente teatralizado e ainda capaz de entregar textualmente uma progressiva clarificação dos valores e conceitos abordados, o espetáculo não perde em magia, subjetividade e beleza.
Procurei escapar ao óbvio das canções enquanto realização central do trabalho, contudo, não seria justo terminar este escrito sem destacar e valorizar a perfeita e bem ensaiada disposição vocal e musical das atrizes em cena. Fazem parecer “fácil” que um texto realizado em coro se sobressaia por sua falta de ruídos, e fazem parecer fácil transmitir em notas e ritmos o espírito central de uma obra.
É um grupo poderoso, orgânico, perfeitamente adequado às convenções criadas pela direção e bastante confortável na condução de cada uma das cenas e atmosferas do enredo — de certo, Azáfama traz um dos mais bem acabados e técnicos elencos de toda a temporada.
Azáfama, Substantivo Feminino
Avaliação: Muito Bom ✪✪✪✪
Crítica por Marcio Tito*
Especial para o Blog do Arcanjo
*Marcio Tito é dramaturgo e diretor teatral, além de editor, crítico e entrevistador no site Deus Ateu. Ele escreveu esta crítica a convite do Blog do Arcanjo. @marciotitop Foto: Edson Lopes Jr.
Texto, letras e músicas: Bruno Narchi | Arranjos instrumentais e orquestração: Gui Leal | Arranjos Vocais: Thiago Machado e Gui Leal | Direção Geral: Bruno Narchi | Direção Musical: Gui Leal e Thiago Machado | Coreografias: Zuba Janaina | Cenografia: Thiago Machado, Júlia Lacomb e Ágatha Perez | Cenotécnico: Jhonatta Moura | Figurinos: Hugo Zuba | Desenho de Luz: Bruno Narchi | Adereços: Bruno Narchi | Assistente de Produção: Nany Cristina | Assistentes de Direção: Julianna Bettim e Marjorie Joly | Elenco: Letícia Soares, Helena Lazarini, Juliana Bógus, Larissa Carneiro, Thaís Piza, Pamella Machado, Leilane Teles, Giovanna Moreira e Zuba Janaina.
Serviço:
Até 27 de julho de 2022| Terças e quartas, às 20h30
SP Escola de Teatro – Unidade Roosevelt – Sala Alberto Guzik (Praça Franklin Roosevelt, 210, Consolação)
R$60 e R$30 (meia)
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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