Por LEANDRO FAZOLLA
@leofazolla
Especial para o Blog do Arcanjo*
“Eu sou uma bixa louca, preta, favelada / Quicando, eu vou passar / E ninguém mais vai dar risada”. Em determinado momento do espetáculo “JORGE pra sempre VERÃO”, a música manifesto de Linn da Quebrada ecoa enquanto vemos imagens de Jorge Lafond e sua icônica Vera Verão. Quinze anos separam a autoafirmação de Linn como “bixa preta” da morte de Lafond que, em seu famoso bordão, repetia: “bicha, não! Eu sou uma quase…” seguido de um nome de mulher. Incessantes batalhas foram travadas para que hoje Linn e tantes outres possam ressignificar e se apoderar de termos antes tidos como depreciativos, como bicha, sapatão, viado.
Nesta guerra, Lafond esteve no front. Afinal, um homem gay aparecer com roupas ditas femininas em um programa que reunia a família tradicional brasileira em frente à TV nos anos 1990 não é pouca coisa. Hoje, muito se questiona o lugar do humor onde personagens gays e de outros grupos minorizados são usados como mote para o riso. Apesar de seu quadro se inserir em algum grau nesse contexto, com Verão não era necessariamente assim. Do alto de seus mais de dois metros de altura, a personagem jamais abaixou a cabeça para a homofobia.
Mais do que uma homenagem a Lafond, se desculpar com o artista foi o que levou Aline Mohamad a idealizar o espetáculo, que fez sua temporada de estreia no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro. A peça surge de uma carta póstuma dela ao primo Jorginho (como era chamado pela família), a quem nunca quis conhecer quando criança, uma vez que “Vera Verão” era o apelido utilizado para ridicularizá-la. Ao repensar sua relação com Lafond, Mohamad escreveu a ele. Depois, junto a Diego do Subúrbio, transformou o texto em dramaturgia.
Sob a direção firme e ao mesmo tempo delicada de Rodrigo França, no palco, ficção e realidade se fundem em um espaço-tempo simbólico, e vemos a “Prima”, vivida por Noemia Oliveira, tentando se desculpar com Lafond / Verão, divididos em duas personagens, interpretadas por Alexandre Mitre e Aretha Sadick, respectivamente.
Ao dar voz à prima, Noêmia faz coro a uma parcela da sociedade que em um lento movimento revê conceitos e busca por reparação. De forma não maniqueísta, sua presença amplia o debate sobre LGBTQIAP+fobia, mostrando como ela pode atingir até mesmo aqueles que não fazem parte da comunidade LGBTQIAP+. Afinal, foi a LGBTQIAP+fobia estrutural que fez a dramaturga não querer se aproximar do primo. Ainda criança, Aline foi algoz ao mesmo tempo em que era vítima de uma LGBTQIAP+fobia que surge na forma de escárnio e perpetua o CIStema hegemônico.
Já Mitre assume a figura de Lafond em uma minuciosa construção física e vocal, e é responsável por trazer ao público sua relação com os familiares, com a própria homossexualidade, seus relacionamentos e outros fatos marcantes de sua vida, ainda que a trama não se pretenda completamente uma biografia e busque outras narrativas.
E temos Vera Verão! A criação de Lafond surge em cena como uma entidade (termo utilizado por ele mesmo para se referir à personagem). Vera é alçada a uma figura quase mítica e universalizante, agregando ao texto passagens que, ainda que não vividas por Lafond, estão longe de ser fictícias. Vera ecoa a vida e gera identificação com diversos homens gays, mulheres trans e travestis pretas e periféricas. Passeando por diferentes encruzas em sua composição, Aretha dá a Verão ares etéreos, evoca a imagética dos orixás e reforça a presença arrebatadora de uma personagem que foi tão fortemente construída no imaginário popular que se tornou quase um duplo de seu criador, o que justifica a assertiva escolha de dividir tais personas no espetáculo.
Ainda que em corpos separados, o amálgama entre Vera e Lafond é reiterado pela química entre Alexandre e Aretha e pela poesia com a qual Rodrigo França costura esta simbiose. Durante os impactantes primeiros minutos da montagem, tudo que o público vê de Jorge é sua silhueta de costas emoldurada pelas lâmpadas de uma penteadeira de camarim, até que Vera entra e se senta na bancada, aconchegando-o delicadamente em seu colo. O espetáculo eleva Verão ao status de abrigo. Ser aclamado e vestir a figura imponente de Vera talvez permitisse a Jorginho se proteger das agruras de ser um homem preto e gay que sofria pela rejeição, pelos encontros românticos nunca assumidos publicamente ou, ainda, pelos ataques diretos que, dizem os amigos, causaram a depressão e o AVC que o levaram.
“JORGE pra sempre VERÃO” chega quase duas décadas após a precoce morte do artista aos 51 anos. Coroar Jorge Lafond é, mais do que um projeto de merecida celebração, um processo de reparação histórica àquele que abriu tantos caminhos. Como dito por ele mesmo em entrevista sobre ser o primeiro homem a ocupar o posto de madrinha de bateria de uma escola de samba, “os outros que vierem [nos próximos anos], não adianta mais, porque ela já passou”. EEEEEPAAAAA!!! Passou, não, Lafond. FICOU!
*Leandro Fazolla é ator, produtor cultural e crítico de arte. Doutorando em Artes Cênicas (Unirio), mestre em Arte e Cultura contemporânea (UERJ), pós-graduado em História do Teatro Brasileiro e Ocidental (CAL) e bacharel em História da Arte (UERJ). Morador da Baixada Fluminense, região periférica do Rio de Janeiro. Cofundador da Cia Cerne e realizador do projeto Cadernos Cênicos, em seu canal no YouTube.
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SERVIÇO:
“JORGE pra sempre VERÃO”
Temporada: 25 de Junho a 24 de Julho
Dias da semana: Sexta-feira a Domingo
Horário: 20h (sextas e sábados) e 19h (domingos)
Ingressos: Contribuição Voluntária (distribuídos 1h antes na bilheteria do teatro)
Local: Teatro Ipanema
Endereço: Rua Prudente de Moraes, 824 – Ipanema
Informações: (21) 2267-3750
Classificação Indicativa: 14 anos
Duração: 60 minutos
FICHA TÉCNICA:
Texto Original: Aline Mohamad e Diego do Subúrbio
Direção: Rodrigo França
Assistente de Direção: Kennedy Lima
Elenco: Alexandre Mitre, Aretha Sadick e Noemia Oliveira
Stand in: Kênia Bárbara
Direção de Movimento: Tainara Cerqueira
Direção Musical: Dani Nega
Direção de Imagens: Carolina Godinho
Iluminação: Pedro Carneiro
Cenário: Rodrigo França e Wanderley Wagner
Figurinos: Marah Silva
Visagismo: Diego Nardes
Programação Visual: Filipe Celestino
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Assessoria – Gisele Machado e Bruno Morais
Mídias Sociais: Júlia Tavares
Produção Executiva: Anne Mohamad
Produção: Corpo Rastreado
Idealização: Aline Mohamad
Realização: MS Arte & Cultura
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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