Crítica: Civilisation escancara vazio da humanidade atual no Festival de Edimburgo ★★★
Civilisation
Avaliação: ★★★ Bom
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
ENVIADO ESPECIAL A EDIMBURGO*
A manhã da última sexta-feira, 26 de agosto, prometia. Afinal, tratava-se de meu primeiro dia como jornalista e crítico estreante no famoso Festival Internacional de Edimburgo, na Escócia, Reino Unido. O evento realizou sua 75ª edição de 5 a 28 de agosto, em uma enérgica retomada do reencontro presencial com o público, após os dois anos de clausura da pandemia.
Para ser mais exato, meu objetivo, em três curtos e frenéticos dias, era não só cobrir o Edinburgh International Culture Summit, a Cúpula Internacional de Cultura de Edimburgo, com os principais líderes mundiais do setor artístico e cultural no Parlamento Escocês, como também vivenciar, na medida do possível, as múltiplas possibilidades do Fringe de Edimburgo.
Claro que também iria acompanhar a comitiva brasileira de dez empresas do setor cultural levadas à cidade em mais uma edição do Creative SP, parceria da InvestSP, Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, Secretaria de Relações Internacionais do Estado de São Paulo e OEI Brasil – Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, Ciência e Cultura no Brasil. E ainda dar um pulo na única peça brasileira no evento, Isto É Um Negro, em parceria com a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
Bom, antes de prosseguir, é preciso explicar o que é o Fringe, que inspirou inclusive seu irmão brasileiro, o Fringe do Festival de Teatro de Curitiba: trata-se da mais lendária e democrática mostra de teatro independente, onde qualquer artista do mundo pode apresentar sua peça, livre de qualquer tipo de censura.
Minha primeira parada, após cruzar a cidade em um dos confortáveis táxis de Edimburgo com um simpático motorista escocês que me recomendou visitar o bar “Boteco do Brasil”, todo orgulhoso que havia na Escócia um cantinho brasileiro, foi no ZOO Southside.
Lá, minha missão era ver minha primeira peça, Civilisation, e me juntar aos integrantes da missão brasileira em Edimburgo, que haviam chegado dias antes de mim.
O local é um belíssimo e imponente teatro em prédio medieval, localizado bem no coração do fervo universitário e cultural de Edimburgo, famoso por exibir peças de todo o mundo durante o festival.
A primeira peça que vi, justamente neste espaço, no começo daquela efervescente sexta-feira, foi a britânica Civilisation, uma parceria do diretor Jaz Woodcock-Stewart com a companhia da coreógrafa Morgann Runacre-Temple, em uma mistura de dança e teatro.
Para o começo de uma manhã com tanta expectativa após praticamente 24 horas de viagem do Brasil à Escócia, a obra poderia soar demasiadamente cruel, ao mostrar uma mulher diante de um luto pessoal, que precisa recomeçar seu dia com as banalidades de um cotidiano repleto de frivolidades vazias, protagonista interpretada com entrega por Caroline Moroney.
Trata-se de um espetáculo de estado produzido pela londrina Antler Theatre, que brinca com o tempo das coisas corriqueiras, como secar o cabelo pela manhã — em uma das mais impressionantes cenas, na qual o gesto da protagonista é dilatado pelo tempo —, fritar um ovo e tomar o café da manhã vendo vídeos ridículos na internet em uma tentativa de conexão com algo.
Esse vazio da personagem, reforçado pelo realismo teatral unido às múltiplas possibilidades interpretativas da dança, é uma metáfora da vida na tal civilização em que estamos, repleta de individualismo e solidão, na qual o ser humano não consegue mais se encontrar de fato e criar uma comunhão com seus semelhantes. Ainda compõe o elenco Claire Gaydon, que faz pequenos e importantes contrapontos à protagonista.
Enquanto a protagonista vive sua lamúria matutino, ela é rodeada de três excelentes bailarinos — James Olivo, Emily Thompson-Smith e Imogen Alvares — que executam exaustivas coreografias, mesmo que não haja interação em tempo algum da personagem e os dançarinos. Esta os ignora completamente, como também à trilha de elevados decibéis, que inclui ABBA, Bach e Scott Walker.
É como se o impulso da vida natural, que talvez esteja lá fora em algum canto a exercitar-se, seja completamente ignorado pela cegueira que a civilização nos provoca, com seu infindável marasmo de dor e vazio.
Civilisation ★★★ Bom
Avaliação pelo crítico Miguel Arcanjo Prado
no 75º Festival Internacional de Edimburgo
Acompanhe o Blog do Arcanjo no Festival de Edimburgo!
*O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viaja ao Festival Fringe de Edimburgo, na Escócia, no Reino Unido, a convite de Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura no Brasil (OEI) e Invest SP.
Siga @miguel.arcanjo
Ouça Arcanjo Pod
Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
© Blog do Arcanjo – Cultura e Entretenimento por Miguel Arcanjo Prado | Todos os direitos reservados.