Crítica | La Mujer Que Soy renova melodrama com argentinas talentosas no Mirada 2022 ★★★★
Teatro Bombón de Buenos Aires é destaque em Santos
La Mujer Que Soy
★★★★ Muito Bom
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
O charmoso e histórico Altântico Hotel, na orla de Santos, abrigou uma das peças mais interessantes do sexto Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc, o Mirada 2022.
Trata-se de La Mujer Que Soy, obra que teve quatro concorridas sessões, com direito a uma extra, com o Teatro Bombón, de Buenos Aires, Argentina.
A obra, muito bem escrita por Nelson Valente, também encenador, apresenta uma situação familiar repleta de conflitos. A produção no Brasil é da OFF Produções Culturais, de Celso Curi e Wesley Kawaai.
Como pano de fundo dessa família, há um pai que transicionou o gênero. Mas, inteligentemente, isso não é centro da história, que vai muito além disso e tornando-se universal ao abordar o humano em sua controversa essência e jogo de dominações.
A tal família apresenta uma nova configuração: o antigo pai/marido agora é uma mulher trans e vive separado da mãe e da filha, já adulta. Esta última se envolve com outra mulher, na realidade uma interesseira usurpadora que só quer tomar a casa (e todos os pertences) da mãe da mulher que diz amar.
Na sessão vista por este crítico, o público foi recebido por duas garotas trans, que insistiam para que o público colocasse máscaras, já não mais exigidas sequer no metrô, ônibus ou avião.
Dentro da sala, com ou sem a proteção na face, o público pôde, enfim, mergulhar na história.
Excelentes atrizes
A coloquialidade do texto nada panfletário dá ainda mais força às atuações de um time de excelentes atrizes.
Maiamar Abrodos, no papel da nova mãe trans, envolve o público em sua personagem repelta de atitude, segura de si e de suas conexões com o espiritual – estas um tanto quanto caricatas, mas nem por isso menos crível.
Mayra Homar vai muito bemcomo a filha cegada por um novo amor, construindo com credibilidade a difícil personagem da mocinha tonta que é passada para trás.
Daniela Pal, a namorada ambiciosa da filha, constrói sua vilã com interessantes matizes que fazem que o público a odeie de imediato. Com sua intensidade e entrega, ela mantém esse ódio do público para sua personagem até o fim, o que é um mérito e tanto para a atriz.
Por fim, Silvia Villazur brilha como a mãe que não aceita perder o antigo marido e mantém pela mulher que ele se tornou o mesmo amor, e que tenta, em vão, defender a filha da namorada sem escrúpulos. Silvia rouba todas as cenas. A grande atriz mistura candura e ao mesmo tempo grande força à sua delicada personagem.
A encenação de Nelson Valente tem como grande trunfo não ser maniqueísta nem tornar sua obra teatral mais uma peça apenas identitária.
Ele a constrói dois distintos cenários: a casa do antigo pai e agora nova mãe, muito bem decorada com temática queer (cenografia deslumbrante criada pelo Coletivo Zero), e a antiga casa da família, bem mais sóbria, onde vive a mãe com a filha.
A diferença de pontos de vista só deixa tudo mais interessante e inteligente.
O público se divide nos dois cenários/cômodos independentes, depois trocando, ora vendo uma perspectiva da história, ora outra.
A questão da identidade de gênero do pai que tornou-se mulher trans não é o cerne da história.
Muito pelo contrário, a questão toda paira sobre a namorada da filha, espécie de estafadora, como dizem os argentinos, ou 171, como chamamos os brasileiros, repleta de lábia e malícia.
Assim, o público entra na história como se assistisse a uma telenovela.
Durante a cena, houve espectadores que chegaram a comentar em voz alta as situações, tamanha identificação.
Ao fim, o público percebe que mergulhou por completo na história, como deve acontecer no bom teatro.
E neste quesito, mais uma vez, a Argentina sai à frente, demonstrando dominar o ofício das artes cênicas que realmente busca comunicação imediata com o público.
La Mujer Que Soy
★★★★ Muito Bom
Avaliação pelo crítico Miguel Arcanjo Prado
no 6º Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas – Mirada 2022
*O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viaja a convite do Sesc São Paulo e Mirada 2022.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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