Suntuoso e magnético, Meu Outro Nome É Luiza é destaque na Mostra de Cinema de Tiradentes
Filme de Ana Luísa Hartmann conquista público com sensibilidade ao retratar Luiza Parisi
Por DAVID GODOI
Enviado especial a Tiradentes*
Em seu primeiro trabalho como diretora no audiovisual, Ana Luísa Hartmann, se destaca na programação da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes com seu filme Meu Outro Nome É Luiza, documentário sobre a atriz Luiza Parisi.
Conhecida no teatro por Ana Hartmann, que já vem se destacando pela sua trajetória como atriz, em trabalhos com grandes companhias de São Paulo, como o Teatro Oficina e o Teatro Cemitério de Automóveis, agora se coloca como uma diretora promissora no audiovisual, em seu primeiro curta-metragem, no qual mergulha em uma pesquisa de personagem em um documentário suntuoso e magnético.
O curta abre com sua protagonista entrando em cena para uma performance burlesca e de dublagem bem humorada da canção, O Meu Amor, de Chico Buarque, interpretada por Nana Carneiro da Cunha (voz e piano) e Hugo Pilger (Violoncelo). Neste momento, já se estabelece o encanto pela figura de Luiza Parisi, atriz que é o eixo da narrativa estabelecida por Hartmann, logo após adentramos à casa para conhecer a atriz, em suas peculiaridades, medos e belezas.
Somos convidados a participar dessa pesquisa de personagem, de olhar Parisi de perto, profundamente, conhecer suas histórias, seu modo de pensar, de agir e de rir, sua risada permeia o curta em muitos momentos, como na história que conta quando é questionada pela diretora, se faz parte de alguma religião.
Parisi diz “sou ateia, quando eu nasci meus pais eram Testemunhas de Jeová, meu pai continua sendo, mas minha mãe é católica, eu não acredito em nada, minha religião é o teatro, minha oração é alongar”. E prossegue: “Quando fui para BH (Belo Horizonte), vinda de uma cidade pequena, eu passei fome, conheci umas pessoas do circo e queria fazer malabarismo no farol para ganhar dinheiro, mas não sabia fazer com três bolinhas, só com duas, eu queria fazer com três, esperar até conseguir, mas a fome bateu, a barriga doeu e eu tive que fazer com duas, eu ganhei cem reais em um dia”, rememora, com bom humor.
A protagonista do filme não parece uma figura fácil: é uma personagem complexa e cheia de camadas, ao mesmo tempo, tem o carisma, o fascínio e a intensidade de grandes mulheres que permeiam o imaginário do audiovisual, como Dercy Gonçalves e Marilyn Monroe.
Hartmann sabe disso, sabe da beleza e da dificuldade de transpor para cena uma figura tão complexa e intensa, mas ela consegue, pois está apaixonada pelo seu ato de estudo, o que faz com que nós, como público, também desfrutemos desses sentimentos turbulentos de amor e fascínio.
Quando Hartmann entra em cena, como atriz, o curta ganha outras camadas, uma atmosfera de teatralidade se instaura. Hartmann vira Parisi, fala como ela, ri como ela, conta histórias como ela. Nesse ponto da narrativa, é curiosamente interessante ver a troca que se estabelece entre elas. Fazer parte dessa pesquisa, olhar a criação de uma personagem com base em uma pessoa real, é de muita beleza, ver o carinho e a generosidade que se estabelece entre as duas na cena.
Em Meu Outro Nome É Luiza, Hartmann se coloca como uma promissora diretora, que com muita generosidade, afeto e amor por sua personagem, consegue extrair o melhor de sua atriz, uma parceria de muito apreço e potência, que faz o público querer mais.
★★★★
Meu Outro Nome É Luiza
Avaliação: Muito Bom
“Descamar essa figura foi um ato performático”, diz Ana Luísa Hartmann sobre filme Meu Outro Nome É Luiza
Após a sessão na 26° Mostra de Cinema de Tiradentes, Ana Luísa Hartmann conversou com o Blog do Arcanjo sobre Meu Outro Nome É Luiza.
Blog do Arcanjo – Como foi para você esse processo de confecção e criação de um curta documental sendo uma atriz que toma uma função de diretora?
Ana Luísa Hartmann – Esse filme nasce pela minha paixão pelos filmes do Eduardo Coutinho, principalmente pelo documentário Jogo de Cena, e quando eu conheci a Luiza, eu senti o desejo de incorporar ela como personagem de certa forma, de entrevistá-la, como se eu estivesse entrevistando um personagem, como se ela fosse um roteiro que eu tinha que ler, e todas as perguntas que eu fiz foi para descamar essa figura como um ato performático.
Blog do Arcanjo – Você teve alguma outra referência no processo?
Ana Luísa Hartmann – Também tem o filme do Kiko Goifman, FilmeFobia, que coloca o diretor em cena, de entender que, por mais que o diretor não esteja em cena, ele se coloca, porque o filme é sempre a tradução da visão de mundo do diretor. E eu resolvi assumir isso como premissa do filme, eu não quero me colocar de fora, eu quero justamente assumir que esse filme sou eu de certa forma, e fazer isso é me colocar em cena mesmo.
Blog do Arcanjo – Como é trabalhar com as ambiguidades das figuras femininas em cena, sendo uma mulher que está em cena e ao mesmo tempo tão diferente da figura que você está documentando?
Ana Luísa Hartmann – A Luiza sempre fala muito da Dercy Gonçalves e tem ela como referência, porque ela é vedete, e a Luiza é vedete e palhaça também, e a Marilyn Monroe também é uma referência para ela. Então, fizemos questão de colocar isso como referência, justamente para colocar ela em cena como ela quer ser vista, de dar visibilidade para esse corpo, que normalmente não estaria na tela de cinema e como ela gostaria de ser representada, para exaltar essa potência. E a escolha visual da minha neutralidade no início é justamente dar uma apagada na diretora, para ela ser essa pessoa que vai entrando em cena de forma quase predatória mesmo, pois, no primeiro momento você só ouve a voz dela em off e ela vai entrando sorrateiramente no filme, porque, ao final de contas, ela também é uma exibicionista, e ela também se espelha muito na Luiza, e esse filme é sobre isso, sobre o quanto eu desejo, sim, ocupar e exibir o meu exibicionismo, e a minha risada e meu gozo, e é tudo isso que eu admiro tanto nela, que eu queria beber e creio que conseguimos imprimir isso no final, nessa visualidade um pouco mais parecida, assumindo esse arquétipo final da exibicionista.
Blog do Arcanjo – O curta percorreu quais caminhos até chegar a Tiradentes?
Ana Luísa Hartmann – Tivemos uma primeira exibição no Festival Internacional de Cinema Independente de Praga, um festival novo e muito interessante, que ocorreu em dezembro de 2022. Essa é nossa segunda exibição. E fiquei sabendo hoje que fomos selecionados para um festival em Bangladesh, na Índia. Começamos a distribuir o filme em agosto, portanto, ainda temos uma longa estrada pela frente.
Blog do Arcanjo – Como é para você estar na 26° mostra de cinema de Tiradentes, fazendo parte de uma curadoria, que abarca e entende a importância de ter realizadores, diretores/as, produtoras, em sua grande parte, ameríndios, indígenas, pretos/as, negros/as, mulheres, LGBTs?
Ana Luísa Hartmann – Para mim, como mulher LGBT+, é entender que o nosso cinema pode encontrar barreiras no cinema comercial, pois ele propõe uma reconfiguração do olhar sobre o corpo da mulher e seus afetos, até hoje muito dominados por uma narrativa masculina. O cinema negro, o cinema indígena, por sua vez, propõem uma decolonização da forma e conteúdo cinematográficos. E a Mostra de Tiradentes justamente “mostra” que temos público, sim, para estas novas propostas. As sessões estão lotadas, o público se interessa e aceita o desafio de ser provocado no seu olhar. É entender que podemos continuar fazendo cinema de acordo com os nossos desejos e necessidade de ocupar nossos lugares dentro de uma narrativa até hoje hegemônica. Dá tesão de continuar.
“Não tenho constrangimentos de me revelar”, diz Luiza Parisi, protagonista de Meu Outro Nome É Luiza
A atriz Luiza Parisi, também falou com o Blog do Arcanjo, sobre o filme Meu Outro Nome É Luiza, após a sessão na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Blog do Arcanjo – Como foi ser documentada, sendo uma atriz sem ter um personagem preestabelecido, e se expor tanto nesse processo?
Luiza Parisi – É a maior brisa [risada], é muito doido, eu estou até complexada quando eu vou falar com as pessoas aqui na Mostra, chamando para assistirem o curta, porque eu convido as pessoas e elas perguntam “é um curta sobre o quê? ”, Então, eu digo, é um curta sobre a minha pessoa, e assim, existe tantos documentários, e eu nem deveria ficar com esse certo constrangimento, que é o que eu estou sentindo, é porque o curta não é apenas um documentário, é um documentário ensaístico, como diz a curadoria da Mostra de Tiradentes. Ouvi isso e adorei esse adjetivo, e tem essa atmosfera e estética teatral, e ser dirigido pela Hartmann, que é um atriz também, e isso é muito legal, porque ela entende as brisas da atriz, e ela assume isso. E uma coisa muito interessante: ela não sentou e escreveu o roteiro; eu fui dando uns palpites, na verdade foi acontecendo, seguimos um fluxo, e o curta foi se transformando. Foi uma saga fazer o curta. Foi muito tranquilo me revelar, porque eu sou uma exibicionista, não tenho constrangimentos de me revelar.
Editado por Miguel Arcanjo Prado.
*O Blog do Arcanjo viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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