Mostra de Cinema de Tiradentes simboliza mutirão da retomada do audiovisual em 2023
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Realizada de 20 a 28 de janeiro de 2023, entre tantas atividades, a maior de todas este ano na 26a Mostra de Cinema de Tiradentes foi realmente o cara a cara. Depois de duas edições online, o evento retornou à cidade histórica com sua tradicional e extensa programação de filmes, debates, conversas, encontros, oficinas, lançamentos e artes. No ano da temática Cinema Mutirão, o que se viu no município foi também um grande mutirão de espectadores, críticos, jornalistas, pesquisadores, cineastas e curiosos em torno da retomada do audiovisual brasileiro como fruição e setor estratégico.
Até porque a Mostra coordenou e sediou em 2023 o Fórum de Tiradentes – Encontros pelo Audiovisual Brasileiro, atividade em diálogo com o novo governo federal, que assumiu em janeiro e reimplantou o Ministério da Cultura. Dezenas de profissionais de cinco subsetores da categoria (formação, produção, distribuição, exibição/difusão e preservação) formularam um extenso e detalhado documento, a ser encaminhado ao MinC, com o mais profundo diagnóstico do audiovisual possível depois de seis anos de desmontes e desincentivos.
“Como se destrói um país? Como se constrói um país?” Assim começa a Carta de Tiradentes, documento apresentado pelo Fórum ao final dos trabalhos. Segundo Alfredo Manevy, um dos coordenadores, as conversas foram pautadas pela busca de diretrizes que abarcassem a democracia, diversidade, descentralização, desenvolvimento econômico e social e governança – especialmente depois de quatro anos de sucateamento, esvaziamento e marginalização da cultura. Na carta, frisa-se o quanto o audiovisual sofreu revezes gravíssimos de 2016 até 2022.
“Dentre as artes, uma das mais afetadas, perseguidas e quase que totalmente paralisadas está o audiovisual brasileiro independente. Da organização institucional à preservação, passando pela formação, produção, distribuição e exibição, não houve área imune ao ímpeto destrutivo da última gestão do Estado brasileiro”, registra o documento.
A “retomada da retomada”, como Manevy se referiu, foi bem representada na Mostra pela homenagem à dupla mineiro-baiana Ary Rosa e Glenda Nicácio, da produtora Rosza Filmes. Ary relembrou que, na época em que entrou na faculdade de cinema na cidade de Cachoeira (BA), ampliaram demandas não só a quem tinha vontade de fazer filmes, mas a quem assistia – uma demanda de público. “Deve ter sido uma das coisas mais sensíveis que o governo federal (do período) percebeu que o e fez decidir levar faculdades para o interior do país”, comentou o roteirista e diretor.
Ter se deslocado para estudar em Cachoeira o conectou não só ao próprio fazer cinematográfico, mas a um senso local de comunidade que manteve ele e Glenda na cidade mesmo depois de formados. “Não parecia fazer sentido a gente se formar e ir trabalhar no Rio ou em São Paulo. A escolha mais importante da nossa vida foi mesmo continuar no Recôncavo, algo que revolucionou a nossa forma de pensar os projetos que queríamos fazer”.
“O cinema que a gente faz foi aprendido no Recôncavo e, se tivéssemos nos formado em outro lugar, é claro que nossos filmes seriam muito diferentes”, comentou Glenda Nicácio. “Nossa prática passa pelo cinema educação, pelas oficinas de formação, por uma prática de criação que vai para as ruas, passa pelas interações, pelas histórias que ouvimos. Nossos pactos estão dentro da comunidade e fazemos filmes para Cachoeira e com Cachoeira”. Trabalhando com baixos orçamentos e um grupo criativo constante, entre atores, atrizes e técnicos, Ary e Glenda dizem ser movidos pela vontade constante de fazer filmes dentro das possibilidades que lhes surgem em termos de tamanho dos projetos. “Eu não quero fazer filmes fingindo que tenho dinheiro, eu faço filmes que mostram que eu não tenho dinheiro”, disse Ary.
A presença da dupla foi o estopim de discussões importantes durante a Mostra, especialmente sobre o momento que vive a produção brasileira em termos estéticos, econômicos e políticos. A começar pela rápida e intensa passagem da ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, que fez uma fala exaltativa da importância da cultura. “A arte faz a gente transformar o mundo através da nossa dignificação. Já na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, feita depois da Segunda Guerra Mundial, estão lá artigos que garantem o direito de todos de produzir e ter acesso a criação artística”, disse a ministra.
“O objetivo de um mutirão é coletivo para que as pessoas possam usufruir de um determinado território construído com esse objetivo”: assim resumiu a pesquisadora Carla Maia, ao falar sobre a temática de 2023. Os trabalhos em coletividade que resvalam na criação de obras em conjunto – várias delas em exibição no evento – foram intensamente discutidos, desde as formas como a precariedade obriga artistas a criarem formas alternativas de expressão até algumas posturas éticas de lidar com as dificuldades como uma maneira incontornável de fazer filmes num país subdesenvolvido. “O coletivo é diferente da reunião, do agrupamento. Não é só estar junto, e sim unir pessoas diversas por desejos que também incluem dissonâncias e diferenças”, disse Carla.
Ficou bastante evidente nas conversas da Mostra esse ano que o cinema – ou a sala convencional de exibição, mais precisamente – não tem como ser a única janela para a quantidade e variedade de formas como o audiovisual se manifesta no país, incluindo expressividades de artistas vindos de áreas como música, visuais, cênicas e outras. A multi-artista Saskia, na Mostra para exibir o média-metragem “Caixa Preta”, chamou de “cinema arrastão” o que ela crê ser necessário para provocar a realização de conteúdos fora dos padrões estabelecidos pela indústria. A cineclubista Anne Santos completa: “Eu amo a sala de cinema, mas outros espaços não precisam ser excludentes dela, eles devem somar, trazer a coletividade como um território, sem hierarquias”.
Foi unânime que, para isso, é urgente uma reeducação do olhar do cinema brasileiro para si e para o outro – o público, no caso. Não através de facilitadores fílmicos, e sim de pedagogia de se ver filmes brasileiros com a generosidade e interesse que percebemos tão comuns na visão que se tem a filmes estrangeiros, especialmente norte-americanos. A cineasta Cristina Amaral, reverenciada como um dos grandes talentos históricos na produção do país, resumiu uma verdade inconveniente que reverberou para além da Mostra: “Temos um público treinado a não gostar de cinema brasileiro. Como vamos ter indústria de cinema assim?”. Para Cristina, é fundamental a compreensão das limitações econômicas da arte brasileira e a descoberta constante de formas de criação contra-hegemônicas.
Para Tatiana Carvalho Costa, curadora e pesquisadora, a pluralidade do atual cenário, com maior presença de artistas negros, LGBTQIA+, indígenas e trans, configura um retrato mais fiel de um cenário até então dominado por diretores homens brancos, em sua maioria de classe média ou alta. “Nesse sentido, o cinema brasileiro sempre foi identitário”, provocou ela, “justamente por abarcar a fatia de maior poder hegemônico. Hoje, esse mesmo cinema é plural. A gente fica circunscrevendo cinemas negros ou indígenas, mas é importante frisar que estamos sempre falando é de cinema brasileiro e das formas dele ser configurado”.
A 26a Mostra de Tiradentes, com suas sessões lotadas em três espaços de exibição, mostrou novamente que o espectador brasileiro é ávido por cinema brasileiro e que a produção do país não vai parar, sejam quais forem as dificuldades. A recriação do Ministério da Cultura, consequentemente levando à reativação da Ancine (Agência Nacional de Cinema), do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) e ainda a chegada das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, são sopros positivos muito fortes no cenário atual. O cinema brasileiro vive, sobrevive e pulsa. Em Tiradentes, seguirá o grande protagonista de sua própria história.
SOBRE A MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
PLATAFORMA DE LANÇAMENTO DO CINEMA BRASILEIRO
Maior evento do cinema brasileiro contemporâneo em formação, reflexão, exibição e difusão realizado no país e chega a sua 26ª edição de 20 a 28 de janeiro de 2023, em formato online e presencial. Apresenta, exibe e debate, em edições anuais, o que há de mais inovador e promissor na produção audiovisual brasileira, em pré-estreias mundiais e nacionais – uma trajetória rica e abrangente que ocupa lugar de destaque no centro da história do audiovisual e no circuito de festivais realizados no Brasil.
O evento exibe mais de 100 filmes brasileiros em pré-estreias nacionais e mostras temáticas, presta homenagem a personalidades do audiovisual, promove seminário, debates, a série Encontro com os filmes, oficinas, Mostrinha de Cinema e atrações artísticas. Toda a programação é gratuita. Maiores informações www.mostratiradentes.com.br
Colaborou David Godoi.
*O Blog do Arcanjo viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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