Crítica: Anónimo Não É Nome de Mulher (Portugal)
Por MARCIO TITO
Especial para o Blog do Arcanjo*
O discurso, o jogo e a forma:
Uma cartografia de sentidos, tão intuitiva quanto factual e historiográfica, coordenada pela via sensível de um projeto estético muito bem armado e jogado, elabora o disruptivo de uma experiência capaz de confessar não somente as figuras e as personagens apresentadas, mas também a fisionomia geral do patriarcado – e de muitas outras paisagens e retratos de revelação e denúncia acerca das estruturas de poder e de opressão.
E o tempo da obra, cuja dimensão e a solidão e a presença assentam filosoficamente o material retórico e imagético, paralisado no instante dos traumas enunciados, dilata uma permanente e árida cosmovisão acerca das relações assimétricas e, sobretudo, acerca da força que as palavras carregam – especialmente em situações de exceção, revolução, insurgência ou resistência.
Deste contexto, buscando sempre a fratura seguinte, o espetáculo ambienta-se em variadas perspectivas – acessa o drama, convoca a performatividade, evoca o teatro épico e, como expediente final, transmuta toda encenação ao sentimento de uma grande e coletiva autoficção.
Capaz de atravessar as identidades das atrizes e atingir em cheio o gênero das próprias atuadoras, este sentimento arrisca um novo tempo para o “dispositivo biográfico” e, em certa medida, também revisa todo o percurso de espetáculos encenados até então.
A direção, enquanto processo narrativo mediamente paralelo ao texto, apresenta muito cuidado na condução das cenas e encontra ápices bastante bem produzidos e orquestrados. Percebe-se que se a direção procurasse emprestar efeito aos instantes de maior aridez, os momentos de grande determinação e revelação visual perderiam em eficiência – logo – a direção se destaca por uma bem-vinda e conscienciosa arquitetura tão fluida quanto pouco ansiosa e, repetidas vezes, obsessivamente nítida.
Um desconfortável repertório de imagens se fixa com extraordinária retidão, e o grande depoimento estético da obra, posto neste ambiente especial e límbico, vaza da encenação para o elenco, tal qual do elenco para a luz, para a trilha e para o espetáculo de modo geral.
A imagem cotidiana e prosaica, que cuida da rotina de um hospital psiquiátrico, distentida ao limite do vazio da experiência, também se esvarizará pela presença das telas e das atordoantes e sisíficas repetições que a cena sugere.
Anónimo não é nome de mulher organiza uma das mais bem realizadas e equilibradas jornadas de equalização entre o que seria “a forma e o conteúdo” de um espetáculo disparado por uma ampla variedade de linguagens e dispositivos.
O lugar da interpretação quando a encenação arrisca tudo:
Maria Quintelas, alocada na boca de cena e desarmada por uma encenação que de modo programático a tornou exposta e abandonada diante de nós, aterra como uma clava e transmuta a experiência dramatúrgica em uma espécie de feitiço contra o tempo presente e contra os agentes da fábula apresentada.
Sua forma de enunciação, com uma força imagética sem igual, passa a operar blocos capazes de uma qualquer edificação em cena, e toda esta materialização da fúria contida pelas palavras, talvez em chave simbólica, parece surgir para defendê-la também dos homens presentes na plateia.
Quintelas barra qualquer leitura estrangeira ao seu processo de realização e, de fato, fabrica uma enorme “comporta cênica” entre a cena e a plateia. Adiante, já protegida por esta conquista e inscrita neste terreno seguro e gerenciado por sua própria energia e interpretação, Quintelas encontra uma situação determinada para que se possa sangrar com dignidade e segurança toda a vida que pulsa e surge de sua extraordinária realização teatral.
Sua magnânima forma de catalisação dos pequenos sentidos da fala, com grande organicidade e raríssimo rigor formal e técnico, amplia não somente a materialidade da palavra, mas também o fundo-falso de uma cena que nunca deixou de se mostrar (mesmo quando preferiu comunicar sua “verdade” e sua lógica pelos caminhos do contraste e da contradição). E tudo o que apareceu calado e guardado entre a forma do que se vê e a pessoalidade de tudo o sentimos, adiante, torna-se parte de uma construção muito mais sensível e idiossincrática do que de fato traduzida ou legendada pela cena.
Em todos os seus papéis, performativos ou não, Quintelas entrega umas das mais impressionantes e bem animadas interpretações que pude encontrar em meu repertório acerca do teatro português contemporâneo – tomando a liberdade de citar a programação do Festival MIRADA, promovido pelo Sesc, enquanto base e conjuntura para este formato de análise.
A interminável energia de Quintelas, seu extraordinário magnetismo e sua bem gerenciada técnica, com bastante sobriedade, se sabem moldura para algo primordial ao formato do trabalho. Certo teor dúbio resiste entre o que se percebe da personagem e tudo o que transborda através da carne exausta da intérprete – e neste momento que a obra definitivamente se mostra capaz de assaltar o imaginário do público e renovar as nossas mais tenras convicções.
Formatando um espaço de atenção “poeticamente totalitária”; conforme a cena se expande, e conforme a cena passa a contar com o passado dela própria, a obra se revela em sua magnitude e torna-se impossível deixarmos de acreditar no espetáculo enquanto manifesto de vida e morte para toda a equipe, bem como para cada uma das artistas envolvidas no projeto.
A realização de Quintelas nos cerca por todas as direções semióticas, sinestésicas e existenciais, e a confirma como uma das mais dinâmicas e sagazes atrizes de sua geração.
Luísa Pinto e a forma como a forma amplia lugares:
Muito embora a personagem de Luísa frequente condições narrativas mais cotidianas ao teatro que se encontra por aí, é preciso destacar sua boa e atenta construção telúrica dos espaços sugeridos.
Parece importante destacar sua ótima expressão corporal e sua inesgotável fonte de tons e semitons voltados à construção das presenças e das espacialidades – A economia do cenário e a poesia do vazio que se instaura ao redor dos adereços e objetos, pela boa condução energética de Luísa, e embora tudo isto possa parecer o mais óbvio e crônico ofício de uma atriz em cena, extrapolam a dimensão imediata e nos lançam ao centro de um evento ritual entre o teatro e a viagem-no-tempo-espaço.
A presente reflexão percebe a construção da atriz como uma profunda e energizante reunião de aspectos entre a mais “primária teatralidade” e o mais sofisticado “gesto de presença”.
Trabalho de atriz e artista conectada aos tempos da alma, mas também, certamente, de uma atriz atenta e boa frequentadora de sua própria e referendada experiência de palco.
Luísa Pinto é o evento teatral equilibrado e perfeito, e certamente é uma das grandes forças capazes de aterrar a poderosa energia de Quintelas, sua parceira de cena.
Catarse:
A sólida afirmação deste teatro total, cuja encenação abre um front tomado pelo elenco, pela luz, pelo cenário e pela sonorização, edifica na plateia uma condição bastante espelhada, contraditória e memorial, e muito embora a obra afirme diversas vezes a sua temática e fábula, parece impossível aos olhos não perceber cada significante enquanto código para uma grande e poderosa leitura sobre os crimes dos homens e sobre a resiliência de todas mulheres, mais uma vez extrapolando as figuras e suas possíveis identidades.
Todos os países, todos os tempos e todas as histórias cabem aqui.
Anónimo não é nome de mulher realiza a política que o século 21 precisará produzir em larga escala – e deflagra um dos teatros mais urgentes e combativos da atualidade.
*Marcio Tito é dramaturgo e diretor teatral, além de editor e entrevistador no site Deus Ateu. @marciotitop
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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