Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
ENVIADO ESPECIAL AO FESTIVAL DE CURITIBA*
★★★★
Adoráveis Transgressões
Avaliação: Muito Bom
Na última década, a Selvática Ações Artísticas conquistou, na marra, o lugar de grupo de teatro mais interessante de Curitiba, pelo menos na opinião deste crítico, que testemunhou seu nascimento e de uma novíssima geração que confrontou o sistema — e que também pagou (e paga) um preço caro por isso.
Se a história se repete como farsa, como nos ensinou um antigo pensador, a Selvática viu seu país virar teatro do absurdo, com os conhecidos duros golpes à sociedade e à classe artística nos últimos anos, do qual a Selvática não esteve imune. Afinal, os não-convites são a forma mais antiga de censura.
Em sua estreia nacional no 31º Festival de Curitiba com Adoráveis Trangressões, na Mostra Lucia Camargo, a principal do evento, espaço conquistado por eles como muita persistência, o diverso grupo curitibano demonstrou que sabe confrontar não só a sociedade como também o próprio teatro.
Nesta peça, brincam de forma desavergonhada com o teatro canônico em seu “cabaré rocambolesco repleto de reviravoltas”.
Porque a Selvática é adoravelmente transgressora.
Com elementos do melodrama das telenovelas e do cabaré (que estudam a fundo há anos) em uma obra que é uma colcha de retalho de referências, o espetáculo tenta construir um diálogo entre a dramaturgia da curitibana radicada em São Paulo Leonarda Glück e a do argentino que foi radicado na França Raul Damonte Botana, conhecido como Copi (1939-1987).
(Um parêntesis: este crítico prefere a pronúncia argentina Cópi, com sílaba tônica no Có, do que a pronúncia afrancesada e colonizada Copí, com sílaba tônica no pí. O próprio texto da peça brinca com as duas formas de se pronunciar o nome do dramaturgo que mexeu com os brios do teatro argentino com sua obra queer).
Para dar início ao desenrolar da novela O Coquetel das Loucas ou Irina, Quem Diria, Acabou em Rabat (a Selvática adora títulos pomposos), há um prelúdio, com o público do lado de fora, nos fundos do Teatro Zé Maria, em uma grande festa com direito a vodka russa e corpos atirados no chão.
Logo, eles ressuscitam e formam uma coreografia à la Thriller de Michael Jackson, para depois convidarem os espectadores a entrarem ao teatro pela porta dos fundos, como aconteceu na própria história da Selvática.
O grande trunfo da Selvática é o seu time de artistas plurais, diversos e em constante mutação, como é a própria vida.
Eles escolheram trocar o bolor de mofo do velho teatro branco padrão pela criação exuberante e desbundada.
Os talentosos e cultos diretores Gabriel Machado e Ricardo Nolasco demonstram química e frescor que remete a grandes duplas do teatro nacional, como Zé Celso e Marcelo Drummond, do Oficina, ou Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, do Satyros, conseguindo construir cenas de forte beleza estética, ironia e ousadia.
O espetáculo tende a crescer. Afinal, estrear no maior festival da América Latina é sempre uma montanha-russa de emoções. Este crítico apurou que questões técnicas, como as falhas de iluminação na estreia, já foram resolvidas.
Se os artistas permitem este crítico colocar algo com toda a humildade do mundo e sem querer se meter na obra alheia, um pouco de edição e poder de síntese também faria bem à peça, conferindo mais dinamismo e fôlego à mesma e ampliando seu poder de comunicação.
Afinal, o novo não deve ser tão cansativo quanto o antigo.
A dramaturgia de Renata Pimentel, grande especialista em Copi, é multifacetada e fragmentada. O público busca a todo instante um fio condutor que é logo quebrado, já que a obra parece pretender ser a antítese do próprio drama. Este sentimento de não-narrativa que paira no público parece intencional.
Este crítico não pode deixar de elogiar o figurino de Amabilis de Jesus, com uma releitura interessantíssima do xadrez em simbiose com outras texturas.
Apesar disso, o time da Selvática possuiu atores de fartas qualidades dramáticas, caso de Patricia Cipriano, por exemplo, que brilha intensamente no número de transição entre os atos. Trata-se de uma grande atriz que seria capaz de construir uma belíssima cena até mesmo ditando bula de remédio.
Outra aparição que sempre é um escândalo de intensidade é a de Stéfani Belo, uma das figuras mais icônicas da Selvática e dona de força cênica descomunal. Ela é dona de uma certeza que só as grandes divas possuem.
O deboche com que atua é uma dádiva, sobretudo quando faz isso diante das ratazanas do teatro nacional, reiterando a grande ironia que é este espetáculo.
O elenco também tem artistas do porte da convidada Marina Viana, nome potente do teatro mineiro que traz seu frescor contestatório. Outro nome que sempre comove este crítico em cena é Simon Magalhães, artista de maior ternura no teatro brasileiro.
O time ainda tem espaço para Nina Ribas, atriz de farta entrega, Má Ribeiro, que mistura a vedete à palhaça, Fernanda Fuchs, de presença desmedida e dona de belíssima voz, bialopse, com seu atrevimento delicioso, e Leo Bardo, ator de rara beleza e dono de uma das vozes mais lindas da nova geração teatral.
Adoráveis Transgressões é a libertação dos “loucos do porão” das famílias hipócritas, como também é a própria família do teatro brasileiro. Eles são artistas talentosos (e perseguidos) que só buscam holofote para aquilo que sempre esteve guardado no fundo do baú. Mas, não fazem textão de forma chata; muito pelo contrário, usam a bagunça para aliviar todas as possíveis tensões.
Como este crítico disse certa vez a Leandro Knopfholz, idealizador do Festival de Curitiba, a Selvática é um grupo que poderia estar em Berlim, Nova York, Londres ou Buenos Aires. Mas, por sorte brasileira, está em Curitiba. A Selvática é a cara das artes cênicas neste tumultuado e algoritmado século 21. Longe das convenções e conchavos típicos dos bastidores do teatro, a Selvática luta para seguir criando arte e conseguir um definitivo (e não momentâneo) lugar ao sol. Porque no fundo, mesmo os mais moderninhos e ditos libertários detestam quando enxergam a força da verdade jogada na cara de forma debochada e desbundada.
★★★★
Adoráveis Transgressões
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Adoráveis Transgressões
FICHA TÉCNICA
Selvática Ações Artísticas. @selvaticaoficial
Elenco: Bialopse, Fernanda Fuchs, Leo Bardo, Má Ribeiro, Marina Viana, Nina Ribas, Patricia Cipriano, Simon Magalhães e Stéfani Belo. Dramaturgia: Renata Pimentel. Cabaréturgia: Ricardo Nolasco. Direção: Gabriel Machado e Ricardo Nolasco. Assistência de Direção e Preparação Vocal: Angela Stadler. Direção de Movimento e Maquiagem: Princesa Ricardo Marinelli. Luz: Semy Monastier. Figurino: Amabilis de Jesus. Cenografia e Efeitos Especiais: Paulo Carneiro. Produção: Cacá Bordini. Coordenação de Ações de Formação: Stéfani Belo. Coordenação de Projeto: Gabriel Machado. Foto e Vídeo: Cibelle Gaidus. Captação de Recursos: Meire Abe. Incentivo: Ebanx, Servopa e Serra Verde Express. Projeto realizado com recursos do programa de apoio e incentivo à cultura – Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.
*O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Festival de Curitiba.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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