Crítica: Gaslight é uma deliciosa viagem no tempo no Festival de Curitiba
Por MARCIO TITO
Especial para o Blog do Arcanjo
Gaslight, no contexto de um festival com linguagens tão múltiplas, brilha enquanto bastião para um tipo de teatro que se mostra pela via da fábula cronológica, da organização maniqueísta e da suficiente impressão de personagem. E a delícia de acessarmos uma obra cujo espírito está posto no tranquilo da tradição, com adequada justeza, é a marca que nos aponta a forma como as histórias sobrevivem e sobreviverão às mais variadas transformações culturais e sociais.
A encenação opta pela frontalidade, e tal asserção estética comunica qualquer coisa anteriormente implícita no material – é uma obra programada ao encontro e determinada ao contato descomplicado e orgânico – um trabalho conectado aos valores da comunicação e, de modo especial, disparado pela forma subjetiva que o teatro sempre carregará consigo.
Teatralmente bem dosada, e amparada pela ideia estrutural de um roteiro consequente, a peça se apresenta enquanto tranquilo e legítimo depoimento acerca das lutas entre “aquilo que somos” e “aquilo que pode ser imposto contra nós”, e parece especialmente valoroso trazer ao tempo presente um material cuja expressão, desde tão antes das recentes ondas, procura capturar o mundo pelo ângulo não somente das mulheres, mas também das experiências coletivas entre mulheres em processo de libertação e tomada de consciência.
Para além do valor social, e agora investigando parte do produto estético do material, vale destacarmos Giovani Tozi e Erica Montanheiro, muito embora todo o elenco se apresente em boa e acertada forma. Contudo, de modo bastante magnético, Erica e sua excelente prosódia assinam o espetáculo com oportuna e técnica variação de tons.
As piadas bem postas, a “donzela” em processo de contrição e empoderamento, tal qual a precisão física em todas as ocasiões são elementos cuja presença constrói ao mesmo tempo que o cenário, a fábula e as atmosferas. Pequenos trejeitos e delicadas corporeidades emprestam energia e vida ao trabalho da atriz e, de forma mais subjetiva, ao plano geral da encenação e do texto.
Giovani, igualmente capaz de narrar com seu excelente repertório, é mais do que perfeito acompanhante ao talento da protagonista. Seus arroubos de canalhice e violência superam a forma e entregam a subjetividade de um gestual bem trabalhado e muitíssimo bem desenhado com esmero e atenção.
A última encenação de Jô Soares, de modo bastante singelo, nos comunica algo muito especial e muito íntimo ao intelecto do artista – o mundo sempre girou da mesma forma, as pessoas mudam pouco e a vida nos exige coragem.
Existe um universo de revoluções esperando por nós, e todas elas serão realizadas quando cada um e cada uma conquistar espaço na própria vida – e tal luta – cuja maior batalha está conosco – somente encontrará sucesso quando a linguagem for protagonista de cada uma das conquistas da alma.
É, de certo, uma obra submissa ao contexto da linguagem, e não poderia existir maior e mais adequada despedida para um gênio da palavra escrita ou simbólica.
Gaslight é uma obra capaz de testemunhar o século 21 e sobre ele expressar um parecer humano, aguerrido e frontal. Um excelente espetáculo e uma deliciosa viagem no tempo.
*Marcio Tito é crítico, dramaturgo e editor do site Deus Ateu.
FICHA TÉCNICA
Bricabraque Produções e Tozi Produções. @bricabraqueproducoes
Texto: Patrick Hamilton. Tradução e Adaptação: Jô Soares e Matinas Suzuki Jr. Direção: Jô Soares e Mauricio Guilherme. Elenco: Erica Montanheiro, Giovani Tozi, Leandro Lima e Maria Joana. Direção de Produção: Priscila Prade e Giovani Tozi. Produção Executiva: Maria Meyer e Dani Agarelli. Figurinista: Karen Brusttolin. Cenógrafo: Marco Lima. Designer de Luz: César Pivetti.Trilha Sonora: Ricardo Severo. Fotografia: Priscila Prade. Direção de Arte Gráfica: Giovani Tozi. Assessoria de Imprensa: Fernanda Teixeira – Arte Plural. Assistente de Direção: Giovanna Donadio. Idealização: Giovani Tozi. Realização: Brica Braque e Tozi Produções.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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