Entre Nós tem atuações poderosas e provoca grandes emoções em cenário minimalista com Teatro das Rosas no Festival de Curitiba
Por Daniel Vitor
Especial para o Blog do Arcanjo
Aluno do 4º ano de Jornalismo da Universidade Positivo, sob supervisão da professora e jornalista Katia Brembatti
“Somos mulheres pecadoras”. A frase, dita em um momento de Entre Nós, espetáculo da companhia Teatro das Rosas, do Rio de Janeiro, evidencia o tema abordado pelas artistas: o julgamento moral que nossa sociedade, muito afetada por verdadeiros dogmas criados em nome de Deus, faz com todas as mulheres. São muito promíscuas ou muito certinhas. Querem ter — vejam só! — controle sobre o próprio corpo e sobre a própria sexualidade. De qualquer forma, sempre são vistas como mulheres pecadoras.
Os três quadrados desenhados no chão, que compõem o cenário, já nos dizem bastante sobre o que iremos presenciar no espetáculo. Representando salas (ou celas) individuais, onde três mulheres estão confinadas, essas demarcações limitam os movimentos das personagens. Inês, Joana e Graça se encontram presas em um lugar misterioso, sem nenhuma explicação. Podem se ouvir, mas não podem se ver. Aparentemente sem nada em comum, elas tentam descobrir porque estão ali, pensando que esta resposta seja a chave para sair de lá.
A dramaturgia de Roberta Mancuso (que também faz parte do elenco) atira o espectador em meio à confusão das personagens que, nos primeiros minutos, não fazem ideia do que está acontecendo. Com um desenvolvimento inteligente, a peça apresenta essas mulheres pouco a pouco. Logo, aprendemos que elas estão ali porque não conseguem se livrar de um sentimento de culpa. A luz é usada para representar a noção distorcida de tempo daquele lugar — um apagão de segundos pode corresponder a um salto temporal de meses ou anos.
Com uma linguagem que se aproxima do experimental em alguns momentos, Entre Nós consegue entregar personagens complexos. Os dramas das três mulheres são repletos de humanidade, o que torna a culpa que carregam ainda mais dolorosa para quem assiste. Grande parte do enredo gira em torno da dificuldade que elas têm para contar suas histórias, evidenciando o peso dos traumas que viveram.
Muito da força do espetáculo vem das interpretações poderosas. Criando personagens com cicatrizes profundas, as atrizes empregam uma tridimensionalidade notável em suas composições. Roberta Mancuso encarna Inês como a pessoa que está presa neste lugar misterioso a mais tempo, cética em relação a encontrar qualquer saída. A mais provocadora do grupo, ela prefere os gritos das discussões do que ficar em silêncio, visto que passou um tempo indeterminado em completa solidão.
Ilana Villar brilha nos momentos em que Joana tenta esconder seu trauma. Enquanto é pressionada para falar a verdade, a atriz expressa um olhar que evoca, além de tristeza, um grande conflito interno ao lembrar de seu passado. Já Karina Diniz confere à Graça um equilíbrio entre a intensidade que expressa toda a violência de sua história e uma doçura que transmite o amor que sente por seu filho. O texto faz questão de entregar a cada uma delas um momento de destaque, o que ajuda não só a desenvolver melhor cada personagem, mas a avançar a história de forma bastante harmônica.
As artistas conseguem criar uma narrativa usando coisas muito simples, como bexigas, um saco plástico com água e um pano vermelho. Além disso, o figurino de Carla Costa utiliza panos brancos marcados com diversos ‘xis’ pretos e um vestido rendado, todos contribuindo para a linguagem visual do espetáculo.
O desenho de luz, comandado por Tiago Calisto, é importante para criar as cenas performáticas, com tons de vermelho, verde, laranja e azul. Um dos momentos mais potentes de toda peça é mérito da iluminação, quando uma personagem é questionada sobre seu passado e, antes que ela possa responder, o cenário é coberto por um azul que anuncia uma lembrança melancólica.
No fim, Entre Nós nos deixa com um gosto amargo. Como podem aquelas personagens se culparem tanto? Mas lembramos que esta culpa é muito real em um mundo infestado por ideais que desejam prender as mulheres em caixinhas cada vez menores, onde o único comportamento aceitável é a submissão.
Entre Nós
FICHA TÉCNICA
Companhia: Teatro das Rosas / Dramaturgia: Roberta Mancuso / Elenco: Karina Diniz, Ilana Villar, Ravínia Sobrinho / Assistente de Elenco: Rodrigo Pierucci / Preparação corporal: Carol Salles.
*O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Festival de Curitiba.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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