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Rodolfo García Vázquez fala da viagem a Gana e Nigéria, na África: ‘Foi de um impacto profundo’ | Entrevista do Arcanjo

Rodolfo García Vázquez: viagem a Gana e Nigéria, na África, representando o teatro brasileiro © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2023

Artista brasileiro fala da SP Escola de Teatro, Cia. Os Satyros e Praça Roosevelt aos maiores pesquisadores do teatro mundial

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo

O diretor brasileiro Rodolfo García Vázquez, diretor e cofundador da Cia. de Teatro Os Satyros e cofundador da SP Escola de Teatro, na qual é coordenador do curso de Direção, acaba de voltar de uma impactante viagem à África. Pesquisador dos estudos decoloniais no teatro brasileiro, ele esteve em Acra, capital de Gana, onde participou do Congresso da IFTR – International Federation for Theatre Research (Federação Internacional para Pesquisa Teatral), evento realizado de 24 a 28 de julho e que reuniu os principais pensadores mundiais contemporâneos do teatro. Em disputada conferência, Vázquez falou da experiência pedagógica inovadora da SP Escola de Teatro, que tem a Adaap (Associação dos Artistas Amigos da Praça) como gestora desde sua criação, da qual faz parte, e também da Cia. de Teatro Os Satyros e o movimento teatral na Praça Roosevelt, centro de São Paulo. Depois, esteve também na Nigéria, onde conheceu pessoalmente o artista e rei yorubá Segun Adefila, que integrou o espetáculo premiado internacionalmente The Art of Facing Fear, da Cia. Os Satyros, durante os anos de pandemia. O diretor brasileiro ainda conta como foi conhecer Cape Coast, em Gana, local em que negros eram desumanizados antes de partirem para a escravização nos navios negreiros. “Foram experiências das mais terríveis que já tive na vida”, define nesta exclusiva Entrevista do Arcanjo. Leia com toda a calma do mundo.

Jovem com a bandeira de Gana no centro de Acra, capital do país africano – Photo by Asiama Junior on Pexels.com Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – Como foi esta sua viagem para a África, quais países visitou?
Rodolfo García Vázquez –
Estive em Gana na Conferência do IFTR (International Federation for Theatre Research), a associação internacional de pesquisa teatral. Foi uma semana intensa de trabalhos, encontros e discussões.  Além disso, fui a Nigéria visitar artistas que trabalharam comigo no espetáculo digital The Art of Facing Fear.  

População no centro de Acra, em Gana, África – Photo by Michael Quaynor on Pexels.com Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – Como foi sua conferência em Gana? Como foi o retorno do público? Como foi falar da SP Escola de Teatro aí?
Rodolf García Vázquez –
A nossa mesa era conduzida por Rustom Bharucha com o tema Decolonialidade e Teatro: práticas brasileiras. Verônica Fabbrini falou de sua experiência com um texto de Aimé Césaire sobre a Revolução do Haiti, com estudantes da Unicamp. Foi um relato muito especial, pois a obra de Aimé Césaire traz questões de grande interesse para estudiosos da questão racial e decolonial. Eu busquei contar das origens da SP Escola de Teatro, da luta dos fundadores do projeto, da Pedagogia singular desenvolvida pela SP Escola de Teatro, modelo único no mundo. Foi uma experiência incrível. Talvez tenha sido das mesas mais disputadas da conferência. Praticamente todas as cadeiras ocupadas. Eu calculo que deveriam haver em torno de umas 200 pessoas, de muitos países do mundo. Houve um interesse muito grande do público presente, com muitas perguntas ao final. Muitos acadêmicos me procuraram ao final para trocar informações e contatos. Vejamos os próximos passos.

Rodolfo García Vázquez: viagem a Gana e Nigéria, na África © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – Como se deu sua relação com a África e em trabalhar e criar pontes com artistas africanos?
Rodolfo García Vázquez –
Conheci pessoalmente muitos africanos que vieram em peso para a primeira conferência da IFTR na África ocidental. Também me encontrei com Rustom Bharucha, grande pensador do teatro contemporâneo. Já tinha uma amizade virtual com ele, mas em Gana tive a honra de dividir com ele uma mesa sobre decolonialidade no teatro brasileiro, juntamente com Veronica Fabbrini, acadêmica da Unicamp. Também contactei professores e acadêmicos de vários países do mundo, em especial da Ásia e da Europa.

Va-Bene Elikem Fiatsi, artista trans de Gana © Divulgação Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – O que mais lhe marcou nessa viagem? O que destaca?
Rodolfo García Vázquez –
As mesas foram bastante interessantes. Acredito que o que deu o tom na conferência foi basicamente questões de raça e de gênero. No caso dos debates em torno da questão de gênero, havia uma tensão forte no ar, afinal o Parlamento de Gana está debatendo uma série de medidas anti-LGBTQIA+.  Em uma das mesas que assisti, houve um debate inflamado sobre o tema, pois entraram em choque valores de tradições locais e de movimento globais. Ao final do debate, uma mulher ganense se levantou e deu um depoimento emocionante sobre a perseguição que pessoas não-cis-heteronormativas sofriam em Gana, e sobre o medo que sentiam de morrer. Foi aplaudida de pé pela plateia. Era uma mulher trans que, quando ainda vivia em condição masculina, havia sido pastor de uma igreja evangélica tradicionalista. Posteriormente, fiquei sabendo que ela era a voz mais importante em defesa dos direitos humanos de Gana e que havia sido convidada pelo Parlamento para falar sobre a questão, a artista Va-Bene Elikem Fiatsi.

Segun Adéfila: rei yourubá e artista do teatro na Nigéria © Divulgação Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – O que você pode nos dizer sobre o pensamento teatral africano hoje que percebeu por lá?
Rodolfo García Vázquez –
Existem artistas muito interessantes pensando sobre a cena na África, pelo pouco que tive oportunidade de conhecer . O diretor teatral Segun Adefila, amigo pessoal meu e que participou como ator em The Art of Facing Fear tem um espaço cultural independente no centro de Lagos, na Nigéria. Tive a oportunidade de visitar o local no final da viagem. Foi uma experiência muito impactante. Tanto por ter conhecido fisicamente um companheiro de teatro com o qual havia trabalhado durante dois anos de modo digital como pelo fato de ver de perto seu trabalho potente com jovens nigerianos. O local tinha um sabor ainda mais especial pelo fato de ser localizado no bairro de Barriga, distrito de Pedro. Os nomes lusófonos não foram fruto do acaso, eram de retornados do Brasil, nigerianos que haviam sido escravizados e transportados para nosso país e  que  conseguiram recuperar sua liberdade e voltar para suas raízes. Aliás, o próprio Segun tem uma ligação com essa comunidade. Sua avó tinha Pereira como sobrenome Aliás, Segun Adefila é um dos reis yorubá. Por ancestralidade, ele herdou o título de rei e é reconhecido como tal em sua comunidade. Ser amigo de um rei não era algo que eu imaginasse algum dia poder afirmar. Pois eu vi nesse centro cultural muitos jovens ávidos por cultura, uma vivência que me lembrou um pouco a da Praça Roosevelt. Também pude assistir um trabalho com uma discussão cênica potente sobre o que é o teatro e o espaço em que o teatro pode ocupar. Usando recursos audiovisuais, bailarinos potentes e textos dramatúrgicos, eles discutiam o sentido do espaço teatral, com uma beleza impressionante. Essa é uma questão importante em um país onde há limitações grandes em termos de iluminação. A rede elétrica sofre cortes quase diários na Nigéria, o que torna a  previsibilidade de ocupação de alguns  espaços quase impossível.

Cape Coast em Gana: lugar do horror, de onde negros escravizados saíram rumo ao Brasil e às Américas © Divulgação Blog do Arcanjo 2023
Detahe do castelo de Cape Coast em Gana de onde saíram os negros escravizados e no qual eram aprisionados com horror por séculos © Pixels.com Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – É verdade que você visitou um lugar onde começou o horror da escravização africana? Como foi e onde é?
Rodolfo García Vázquez –
Sim. Fui a Cape Coast, em Gana, onde visitei dois castelos históricos. O Castelo de Cape Coast e o castelo de Elmina. Foram experiências das mais terríveis que já tive na vida. Nesses dois castelos concentrou-se grande parte do comércio transatlântico de escravizados durante os mais de três séculos que essa grande tragédia humana ocorreu. Os africanos eram sequestrados, vendidos a comerciantes que os prendiam nas masmorras desses castelos. Lá, sem janelas, em escuridão, eles passavam semanas comendo uma ração mínima e fazendo suas necessidades fisiológicas uns sobre os outros, sem nenhuma estrutura sanitária. Bebiam água da chuva e conviviam com pessoas debilitadas ou corpos sem vida que aguardavam serem recolhidos por dias. As mulheres eram expostas em uma área interna do castelo e do alto de suas varandas, os governadores locais escolhiam aquelas que seriam estupradas. Em um dos grandes salões do andar superior, em cima das masmorras, havia um salão de venda de escravizados. No outro grande salão, em cima da masmorra dos homens, havia uma igreja para os brancos. Quando os navios negreiros chegavam ao porto, era aberta uma pequena porta da masmorra, através da qual só era permitida a passagem de um prisioneiro por vez, agachado. Muitos morriam antes disso, e aqueles que conseguiam sobreviver a esse horror, eram os que passavam por esse corredor que se abria para o porto. Pela primeira vez, muitos viam a luz do céu e o navio para onde embarcariam para países como o Brasil. Imaginar que muito da população brasileira é descendente de pessoas que passaram por essa experiência (inclusive uma parte de minha família) me fez entender a dimensão trágica da nossa constituição enquanto país.

Departamento de Teatro da Universidade de Gana, na África © Divulgação Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – O Brasil e o teatro precisam se aproximar mais da África?
Rodolfo García Vázquez –
Acredito que sim. Reconheci tantos pontos em comum. Era interessante ver como brasileiros e africanos dançavam, em contraponto a pessoas de outras origens. Era visível a afinidade corpórea. Outra coisa que me chamou a atenção foi o humor. As pessoas na rua riam, às vezes até sozinhas, numa coisa que me lembrava muito o humor brasileiro. Na Nigéria, isso se tornou ainda mais marcante, ao ouvir palavras do nosso cotidiano: axé, orixá, Ogum, Oxóssi, Yemanjá…Como nossa cultura preservou tanto da cultura africana, depois de tantos séculos? O que isso significa para nossa identidade? A experiência de ter vivido em Portugal me trouxe a identificação da língua e da religião de matriz europeia. Mas estar na África me trouxe outras identificações, muito mais sensoriais e espirituais. Foi de um impacto profundo que ainda não consigo dimensionar completamente.

Jovens em escola da Nigéria – Photo by Emmanuel Ikwuegbu on Pexels.com Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – Você é estudioso da decolonialidade. Qual papel enxerga da decolonialidade em correlação com o teatro hoje?
Rodolfo García Vázquez –
Acho que o processo decolonial é inescapável para o teatro brasileiro. Estamos buscando nossas raízes, recontar nossa história, descobrir caminhos próprios. Me lembro de alguns eventos de dez, quinze anos atrás em que os artistas jovens brasileiros se aglomeravam ferozmente para ouvir pensadores ou artistas europeus. Hoje em dia, isso jamais aconteceria. As palavras dos ‘gurus’ teatrais vindos dos impérios coloniais ou neocoloniais agora são vistas com muito mais parcimônia e crítica pelos jovens de agora. Isso é um exemplo da mudança completa de eixo do pensamento e da produção artística nacional. E que se reflete também na academia, nos textos montados, nos movimentos teatrais regionais, etc. Parece que estamos criando uma identidade própria do teatro brasileiro e que já não temos um sentimento de inferioridade em relação a ninguém. Nosso teatro tem sua própria luz.

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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