Isto Não É Uma Democracia expõe no teatro discursos de 5 presidentes eleitos no Brasil: ‘Explosões na cabeça’, diz Paulo Maeda

Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro: discursos de posse dos presidentes eleitos vira a peça Isto Não É Uma Democracia © Divulgação Blog do Arcanjo 2023

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo

O que disseram em seus discursos de posse os últimos cinco presidentes eleitos no Brasil? Esta é a premissa da peça de teatro Isto Não É Uma Democracia, concebida pelo ator e diretor Paulo Maeda com o Coletivo Jorick. A obra estreia nesta sexta, 25 de agosto, na SP Escola de Teatro da Praça Roosevelt, no centro de São Paulo. O público verá a interpretação de  Felipe Tercetto e Paulo Maeda dos cinco discursos dirigidos por cinco difeferentes diretores convidados: Paulo Maeda, Thammy Alonso, Rodrigo Mercadante, Caio Marinho e Ana Pereira, que criaram as cenas de Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. Maeda conversou com exclusividade sobre o espetáculo com o Blog do Arcanjo. Falou sobre os caminhos que a peça tomou, como escolheu os colaboradores e ainda comenta o que acha da tensa situação da democracia na América Latina e no mundo. Leia com toda a calma do mundo.

Paulo Maeda criou a peça Isto Não É Uma Democracia a partir dos discursos de posse dos cinco últimos presidentes do Brasil © Divulgação Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – Como surgiu a ideia deste espetáculo?
Paulo Maeda –
É tão difícil tentar chegar ao centro de uma ideia, né? São muitos “centros”, um deles é que eu fiquei muitos anos trabalhando com um documento histórico que foi a ata do Conselho de Segurança de 13 de dezembro de 1969, quando aquele Conselho votou pela instituição do AI-5. O Coletive Ato de Resistência ficou cinco anos falando as palavras deste documento. Eu queria continuar trabalhando com documentos históricos, mas queria trabalhar com documentos mais contemporâneos, queria visitar documentos mais formais com elementos que as pessoas se lembrassem, quase como se revisitasse a história à quente… O ano de 2018 não estava fácil, muitos indícios de tempos mais sombrios se anunciavam. Particularmente, eu tive muitas crises (quem não teve?), uma coisa leva a outra, tivemos as eleições e uma bomba – a extrema direita no poder… Pensei que era momento de repensar a democracia, era mais do que interessante, era urgente. Então, dei um passo atrás, se temos que repensar a democracia vamos rebobinar a fita (olha eu mostrando a idade), não vou voltar lá pra Grécia Antiga, não sou pretensioso… Vamos fazer um recorte: e se estudasse a redemocratização? Tá, mas começa por onde? Diretas Já…Tancredo morre, Sarney assume, não vale… então começa pelo Collor. Temos aí um nome, um presidente, de pronto vieram os discursos de poder, chegamos então a um documento histórico, agora como eu vou dar sequência a isso? A semente está aqui…

Lula toma posse em 2003 e recebe a faixa do presidente até então FHC © Divulgação Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – Como foi deparar com esses discursos durante o processo de pesquisa para a peça?
Paulo Maeda –
Foi um longo processo. A gente planta a semente lá atrás em 2019, em 2020 – pandemia (chegamos a fazer um trailer online, esses experimentos loucos que fizemos naquele momento), retomamos de fato o trabalho no final de 2021. Um dos primeiros achados/incômodos foi o quanto algumas palavras se repetiam em quase todos discursos: democracia, justiça, moral – independentemente de qualquer espectro político… o que queria dizer essa repetição? Por que a insistências nessas palavras? É algum conceito “universal”? E não estamos neste momento repensando o que é “universal”… pelo menos em nossas bolhas. Mais pra frente, o discurso começou a ser um antagonista em cena. Experimentamos enfrentar esse discurso antagonista em cena, e aqui talvez esteja dando um spoiler, porque uma coisa é o discurso do poder e outra o discurso do povo – o que causa um curto-circuito com o conceito de democracia! Resumidamente, nossa relação com os discursos se transformou absurdamente no processo.E estou falando de uma maneira geral. Poderíamos comentar sobre cada um deles, do Collor, do FHC, do Lula, da Dilma, do Bolsonaro… (como foi complexo trabalhar o discurso do Bolsonaro…). E estou falando da minha perspectiva, tem o olhar de cada uma/um dos integrantes do coletivo.

Thammy Alonso dirige um dos quadros da peça Isto Não É Uma Democracia

Miguel Arcanjo Prado – Como foi a escolha dos diretores e também de quem estaria contigo em cena?
Paulo Maeda –
Sempre temos muitos centros de ideias. Aqui temos mais um desses centros. Eu não conhecia o Felipe Tercetto, ele entrou no espetáculo AI-5, Uma Reconstituição Cênica através de colegas que já o conheciam, e então vi em cena aquele rapaz trocando de ministros/personagens a cada semana e não só com o texto apropriado, mas também criando metáforas em cena (o AI-5 era uma grande loucura, porque os artistas tinham muita liberdade para exercer sua criatividade, e espaço para experimentá-la…) e eu via as características e jogos e analogias que ele trazia a cada semana, sempre muito bem sacadas, precisas. Aí, pensei: gostaria de trabalhar com ele! Posto… aqui está. Sobre as diretoras e os diretores, eu gosto de chamar pessoas com quem tenho liga, podemos ter pensamentos divergentes sobre alguns assuntos, mas gostamos de criar, de pensar junto. Gosto de propor desafios, jogos, dispositivos de criação para as pessoas e me dá tesão essa troca, essa confluência. A Thammy Alonso [foto acima], que é também produtora além de diretora do Collor, eu a conheci na Cia Bruta de Arte. Ela também fez Direção na SP Escola de Teatro. Ela é um poço de criatividade, de um cuidado estético. Gosto muito do tratamento lúdico que ela traz, de como contrapõe imagens e contradições em cena; o Rodrigo Mercadante chegou um pouco depois (quem dirigia o quadro do FHC era a Vana Medeiros, veio a pandemia, outras oportunidades surgiram, e assim é a vida…, e veio o Rodrigo). Ele já tem um olhar atento para entender sobre o que estamos falando, ele aninha nossas criações e vai acumulando imagens e teorias e conceitos e depois vai limpando tudo. Ele não tem medo de experimentar. O Caio Marinho também é companheiro da época do AI-5. Cada vez mais percebo o olhar generoso dele, ele se deixa contaminar pela ideia e vai encontrando camadas de intenções e leituras do que está propondo no quadro do Lula, além disso é um cenógrafo maravilhoso, todas inquietações de cena ele desenha no cenário também. E, acabando, o ciclo de direções, tem a Ana Pereira, que é companheira desde 2005, quando éramos do primeiro Núcleo Experimental do Satyros. Eu e Anap temos gostos muito próximos, sempre trocamos leituras, músicas. A direção dela nasce de um senso estético muito particular. E ela arrisca, é corajosa, ela é a diretora do quadro da Dilma. Por fim, trouxe o Renato Mendes para me auxiliar, eu estava acumulando funções e ele trouxe todo um refinamento dramatúrgico, por vezes trazendo até mais humor para alguns momentos. Voltando um pouco, eu gosto de propor desafios às pessoas com quem gosto e tenho vontade de trabalhar e acho que se elas aceitam é porque algo da ideia pulsa nelas também. Pronto, já temos algo em comum para começar.

Democracia em turbulência na América Latina tem Javier Milei, da extrema direita, à frente na corrida presidencial no país hermano © Telam Blog do Arcanjo 2023

Miguel Arcanjo Prado – A América Latina ainda tem uma democracia frágil em sua opinião?
Paulo Maeda –
Essa é a pergunta mais difícil, quem sou eu para fazer uma análise sociológica assim, é até arriscado. Mas, de maneira bem pessoal e leiga, eu creio que a democracia esteja fragilizada em todos os cantos. Um dos pontos potentes e perigosos da democracia sempre foi a mutabilidade desse conceito, a democracia que vivemos hoje não é a mesma da Grécia Antiga. E por conta dela estar sempre em transformação é muito fácil de atacá-la. Quando se tem algo que é incerto, em processo, esse algo vira um alvo. Estamos em um momento deveras instável também, se olharmos para trás, os anos 1960 e 1970 foram anos de ditaduras em muitos países da América Latina. Veio então um momento que ainda será revisitado com outros olhares, que são os anos 1980 e 1990, esses anos de desbunde, de términos de ditaduras civis-militares, mas de fortalecimento de um sistema neoliberal, e toda consequência dessa tática Reagan-Tatcher e suas privatizações, reformas, conciliações e afins. Retomando, hoje estamos com os países da América Latina não em ondas coletivas, e sim em uma espécie de maremoto sem lógica. Tivemos governos progressistas retomando o poder institucional no Chile recentemente, agora a vitória de Lula aqui, mas também estamos vendo o Milei na Argentina ganhando força, os governos do Lacalle Pou no Uruguai e do Guilhermo Lasso no Equador… Não deixo de pensar o quanto é lucrativa e segura essa instabilidade. Enquanto essas forças se chocam, é mais fácil continuar “passando a boiada”, digo isso pensando no macro. Penso, sim, que a América Latina está num período frágil, mas quando não foi? Se analisar os últimos 500 anos, o que podemos achar são espaços de respiro em alguns pontos específicos dessa tragédia histórica que é a invasão de Abya Yala [Américas].

Miguel Arcanjo Prado – O que você espera que o público que vir esta peça reflexione?
Paulo Maeda –
A reflexão do público é um tema complexo também. Primeiro, temos sempre que questionar e refletir sobre o público: Quem é o público hoje? Onde está o público hoje? Penso que deveria ser a primeira pergunta que nossa categoria deveria se fazer e tentar responder. Não que vá chegar a alguma resposta, mas almejá-la e colocar em prática, agir para tentar respondê-la. Porque podemos acabar ficando presos num looping infinito. Como ir além… Hoje temos quantas peças em cartaz? Quantas obras incríveis e potentes espalhadas, o quanto estamos conseguindo criar um espetáculo e mantê-lo vivo? Percebo as temporadas cada vez menores. Lembro de um dos programas que surgiram na época da Marta [Suplicy, ex-prefeita de São Paulo], o Formação de Público. Como era potente aquele projeto, foi o primeiro a cair… Era o que mais deveria ser cuidado e protegido com unhas e dentes, porque a formação de público permite uma tentativa de alteração numa forma de cultura, uma tentativa de pensar continuidade, planejamento de longo prazo e essas coisas. O que é muito difícil quando temos que apagar incêndios em quatro lugares ao mesmo tempo. Perplexo, diante desse cenário, eu quero refletir sobre o que vivemos nos poucos mais de 30 anos que tivemos de sexta República, gostaria que o público refletisse comigo, quem sabe nascem umas ideias boas? Lembro de estar dando aula em 2018 para uma turma de ensino médio, galera com 16, 17 anos, e todos discutiam quem seria o melhor candidato naquela eleição. E eu levantei a questão: quem estava na presidência antes? Ah, a Dilma! E antes dela? Ah, o Lula! E antes dele? Silêncio. Um arrisca: foi aquele… qual o nome mesmo? Teve um lance de roubar o dinheiro, né? O Collor? Então… Isto Não É Uma Democracia tem esse lugar um tanto didático, e não tenho medo de falar isso: olha, historicamente a gente funcionou assim e assado durante esses anos, e olhe quem veio depois de quem. Claro que colocamos nossa reflexão sobre. Não somos neutros, não existe arte neutra. Mas, além de refletir sobre todas essas temáticas que nos permeiam, eu gostaria que o público se permitisse ser atravessado por uma experiência. Revisitar ou visitar esses tempos históricos está gerando uma grande explosão na minha cabeça… Por que não compartilhar nossas explosões mentais?

Isto Não É Uma Democracia

Sinopse:

A ideia de democracia está em crise, o ideal de democracia está em crise. Desde a última abertura política, em 1985, até agora, 2023, o Brasil teve cinco presidentes democraticamente eleitos pelo povo: Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. Cinco diretoras/es receberam o convite de criar um quadro a partir de alguns dispositivos: um discurso de posse, uma playlist com músicas da época do mandato e algumas imagens ligadas ao contexto histórico. Cinco quadros que se encaixam num quebra-cabeça a ser desvendado por dois Anjos da História, que se questionam: isto não é uma democracia?

Ficha Técnica: 

Concepção: Paulo Maeda
Direção e Dramaturgia:
Quadros Prólogo, Bolsonaro e Epílogo: Paulo Maeda
Quadro Collor: Thammy Alonso
Quadro FHC: Rodrigo Mercadante
Quadro Lula: Caio Marinho
Quadro Dilma Rousseff: Ana Pereira
Elenco: Felipe Tercetto e Paulo Maeda
Iluminação: Mario Spatizziani
Cenário: Caio Marinho
Figurinos: Angela Ribeiro
Design Gráfico: Felipe Tercetto
Produção: Coletivo Yorick de Teatro

Serviço:

Isto não é uma Democracia – Ceci n’est pas une Démocratie

Onde: SP Escola de Teatro – Unidade Roosevelt (Praça Franklin Roosevelt, 210, Consolação, São Paulo) 
Quando: 25/08 até 23/09/2023. Sextas e sábados às 20h30. Nos dias 15 e 16 de setembro não haverá apresentação.
Ingresos: R$ 40,00 (inteira) e R$ 20,00
Vendas de ingresso apenas pela internet: Sympla SP Escola de Teatro
Duração: 90 min 
Classificação: 14 anos

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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