Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Enviado especial a Campinas – SP*
Um dos nomes mais interessantes, vanguardistas e provocativos surgidos no universo da dança nos últimos tempos, Gal Martins é uma das principais atrações da 13ª Bienal Sesc de Dança, que chega ao fim neste domingo, 24, e que desde o último 14 de setembro contou com 60 atividades em Campinas, no interior de São Paulo, com realização do Sesc São Paulo, com Sesc Campinas, e apoio da Unicamp e da Prefeitura de Campinas. A artista estreou neste sábado, 23, seu espetáculo Engasgadas – Segundo Rito para Regurgitar o Mundo, no CIS Guanabara, onde realiza segunda e última apresentação neste domingo, às 18h30, com sua companhia de dança, a Zona Agbara. No espetáculo que concebeu e dirige, seis intérpretes expõem as muitas violências que suas corpas pretas e gordas sofreram ao longo de suas existências e anunciam que não aceitam mais engolir esse mundo indigesto. Ao discutir em cena a gordofobia, tão atrelada à história e ao cotidiano da dança, ela busca ressignificar dores cotidianas e colocá-las em diálogo com a potência da ancestralidade de um matriarcado negro. A coreógrafa, dançarina e diretora já premiada com o Prêmio Arcanjo de Cultura em 2022 conversou com o Blog do Arcanjo com exclusividade pouco antes da estreia do prestigiado evento da dança. Leia a entrevista.
Miguel Arcanjo Prado – Qual a sensação de chegar com Engasgadas à a Bienal Sesc de Dança? O que representa?
Gal Martins – Participar da Bienal é sempre especial, porque é um evento que já faz parte de um calendário internacional de dança, um evento muito importante que perpassa diversas formas de fruição e de discutir o fazer da dança. Então, ver Zona Agbara com Engasgadas nessa programação representa uma conquista, uma garantia de espaços, de espaço para corpas gordas em cena. Agbara significa força e potência e o zona vem dessa ideia de demarcação de espaço, então é muito bom nos ver, com as nossas imensidões, demarcando nosso espaço nesse evento que é de grande importância.
Miguel Arcanjo Prado – Durante muito tempo a Dança foi um lugar elitista e majoritariamente branco. Como enxerga eventos como a Bienal Sesc de Dança buscarem ser mais inclusivos e diversos em sua programação? Em sua visão, isso é fruto de quê?
Gal Martins – Essa é uma questão bem importante de se falar. Acho que há alguns anos a Bienal, não só a Bienal, como o próprio Sesc São Paulo, vem olhando com muito cuidado para essa ideia de corpos plurais, de corpos dissidentes, em suas programações. E eu acho que a Bienal propõe um ato, uma potência imersiva dessas pluralidades. Acho que isso é fruto de muitas coisas, fruto da insistência de muitos artistas em manter a essência do seu trabalho no que cada um acredita. É de extrema importância nesse lugar, de ser uma resposta a essas insistências de sobrevivência desses artistas nesse universo da dança, que realmente durante muito tempo foi branco, elitista, gordofóbico, machista em alguns casos. Então, acho que a Bienal é uma resposta a um comprometimento e reconhecimento desses artistas que estão insistindo. Tenho falado muito de insistência, de desobediência, e a Bienal é esse lugar que dá espaço para isso.
A gente não quer que as pessoas olhem para as corpas gordas com constrangimento e, sim, que olhem com potência.”
Gal Martins
Coreógrafa e diretora de Engasgadas, da Zona Agbara
Miguel Arcanjo Prado – Engasgadas fala sobre um basta às violências cotidianas que corpos pretos e gordos enfrentam. Você vê alguma evolução no mundo da dança enquanto a corpos que não se encaixam no dito “padrão”?
Gal Martins – Acredito que a gente ainda tem muito, muito, o que avançar. Infelizmente, a Zona Agbara surge por uma pauta que é ausente. A dança ainda mantém alguns estereótipos, algumas marcas que são históricas e ainda existe, sim, o imaginário de que um corpo gordo não é esteticamente bonito dançando, que um corpo gordo não consegue dançar determinadas narrativas, determinadas linguagens. Então, eu sinto que ainda temos que avançar. Infelizmente, Zona Agbara, pelo menos em São Paulo, é praticamente o único grupo formado exclusivamente por mulheres pretas e gordas e que fazem uma pesquisa em dança contemporânea, em linguagem própria de movimento. Isso é um sintoma desse lugar que não aceita, que não enxerga a potência de corpos gordos e insiste em nos colocar como um corpo que não é capaz, como um corpo que é improdutivo e, principalmente, como um corpo doente. E é o que a Zona Agbara vem tentando expressar, inclusive no Engasgadas: dizer que a gente não aceita mais esse tipo de esteriótipos colocado nas nossas corpas, que a gente não aceita, que estamos aqui. Então, a gente insiste, voltando à insistência, mas principalmente numa disputa de imaginário, de mostrar que existem possibilidades de se dançar numa pluralidade de corpos. Eu acho que isso não é só sobre corpo gordo, é sobre os corpos PCDs, que eu acho importante citar que a Bienal já vem há alguns anos trazendo essa pauta, dos corpos PCDs. Então, a gente ainda tem muito o quê avançar. Infelizmente, a Bienal sozinha não vai dar conta disso. Eu acho que isso envolve muitas coisas. Uma delas é vontade política e ampliação de repertório mesmo, de curadores, de críticas. Enfim, são muitas as camadas ainda para evoluir.
Miguel Arcanjo Prado – O que sua dança quer provocar no público e na classe e em um evento como a Bienal Sesc de Dança?
Gal Martins – A Zona Agbara quer provocar no público experiências, imersões poéticas, imersões flácidas. A gente quer que o público não olhe mais o corpo gordo como esse corpo improdutivo também, como falei na pergunta anterior. A gente não quer que as pessoas olhem para as corpas gordas com constrangimento e, sim, que olhem com potência. É um espetáculo extremamente provocativo, denso, porque não dá para falar de forma leve dessas questões. Essa densidade que a Zona Agbara vem trazendo em seus trabalhos todos nesses seis anos continua presente no Engasgadas. É um trabalho em que o público fica muito imerso com a gente, envolvido nessa densidade, e em que também pode participar de um ritual, um ritual de cura, um ritual de aceitação e, principalmente, de celebração desses corpos. O que a gente quer provocar é isso: que o público saia preenchido, revendo um pouco os seus conceitos sobre esses corpos, mas também com essa ideia de celebração. Estamos celebrando corpas gordas em cena na sua potência. Não apenas como uma pauta social, mas, sim, que são corpos gordos dançando profissionalmente, pesquisando e criando uma narrativa estética em dança, que não seja só uma cota ou que não seja só uma representação da pauta social. É também, até porque meus trabalhos não se desenvolvem sem as pautas sociais, mas é importante dizer que também é uma narrativa, uma forma de se pensar e construir conhecimento em dança. Eu acho que é isso. E o que a Zona Agbara vem construindo, que eu chamo de poéticas da flacidez, é um modo de conhecimento, de memória, de arquivo, de registro de uma dança que está sendo produzida agora.
Miguel Arcanjo Prado – Engasgadas terá novas temporadas?
Gal Martins – Estaremos em novembro no Sesc Sorocaba. A gente publica sempre nossa agenda nas redes sociais, então é legal pedir para as pessoas acompanharem todas as ações, tudo o que estamos envolvidas, nas redes sociais, no @zonaagbara.
Colaborou Frederico Paula, da Nossa Senhora da Pauta.
*O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viajou a convite da Bienal Sesc de Dança e do Sesc São Paulo.
ENGASGADAS, SEGUNDO RITO PARA REGURGITAR O MUNDO
ZONA AGBARA | SP | BRASIL
FICHA TÉCNICA
Concepção, direção artística e coreografia: Gal Martins;
Assistente de direção e preparação corporal: Rosângela Alves;
Intérpretes-criadoras: Iolanda Costa, Letícia Munhoz, Suzana Araúja, Gal Martins, Gustav Couber e Rosângela Alves;
Trilha sonora: Dani Lova;
Texto: Elenco;
Figurinos e adereços: Thaís Dias;
Preparação vocal: Klécio Miranda;
Direção de produção: Dani Lova;
Assistente de produção: Ana Paula Almeida;
Projeto e operação de luz: Camila Andrade;
Operação de som: Dani Lova;
Fotografia e audiovisual: Lua Santana.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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