★★★★ Crítica: Ed Moraes valoriza ícone gay Harvey Milk no provocante solo Eu Não Sou Harvey

O ator Ed Moraes brilha com sua potência sutil no solo Eu Não Sou Harvey, no qual celebra 20 anos de carreira, com temporadas em SP e no Rio © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2024

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo

Eu Não Sou Harvey
★★★★

Com 20 anos de carreira artística, Ed Moraes é um dos melhores atores de sua geração. Isso ficou muito evidente desde quando o vi pela primeira vez, no espetáculo Limpe e Todo Sangue Antes que Manche o Carpete, em 2011, que inaugurou sua Cia. dos Inquietos com o aclamado texto de Jô Bilac sob direção de Eric Lenate. Na obra, assim como a grande atriz Luna Martinelli, Moraes se destacava no elenco como uma composição altamente potente, fincando seu espaço na cena paulistana.

Agora, depois de muitas idas e vindas e uma pandemia no meio, ele comprova seu talento e sua sutil potência no solo Eu Não Sou Harvey – O Desafio das Cabeças Trocadas, espetáculo por ele idealizado e escrito e dirigido por Michelle Ferreira, outro grande nome de sua mesma geração.

Com a obra, em temporada gratuita e imperdível no Centro Cultural São Paulo, que estreou nesta quinta, 15 de fevereiro, e vai até 3 de março, ele celebra seus 20 anos de palcos. A comemoração depois prossegue no Rio de Janeiro, onde a peça faz temporada de 8 a 31 de março, no Teatro Municipal Café Pequeno, no Leblon.

Ed Moraes no solo Eu Não Sou Harvey © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2024

Sobrevivente da pandemia

Eu Não Sou Harvey estreou pouco antes daquela loucura que todos vivemos em 2020 e precisou ser interrompida abruptamente, como quase tudo naquele então.

Afinal, foram tempos de medo e recolhimento em prol da vida. Quatro anos depois do trauma coletivo, o ator buscou forças e recursos onde sequer existiam para fazer com que essa temporada acontecesse — e nas duas principais capitais do País. O que é um esforço hercúleo digno de aplausos.

O ator Ed Moraes no camarim do CCSP na estreia de Eu Não Sou Harvey © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2024

Ao realizar temporada gratuita de Eu Não Sou Harvey no mais importante centro cultural da maior metrópole brasileira, Ed Moraes demonstra a generosidade de um artista que pensa em acessibilidade e na formação de público. Afinal, um recado tão importante quanto o de Harvey Milk precisa reverberar em novas cabeças.

Harvey Milk em foto oficial como supervisor da cidade de São Francisco oito meses antes de ser assassinado em seu gabinete pelo então colega de plenário Dan White © Divulgação Blog do Arcanjo 2024

A peça se inspira em um dos ativistas mais importantes da luta LGBTQIA+ no mundo, Harvey Milk (1930-1978). Vereador eleito pelo bairro gay Castro, na São Francisco da Califórnia dos anos 1970, ele foi assassinado brutalmente por um colega de parlamento, Dan White (1946-1985), depois de ter feito história como o primeiro político norte-americano declaradamente gay a tomar posse em um cargo público.

O ator Ed Moraes visita a história do político gay Harvey Milk, assassinado em 1978, na peça Eu Não Sou Harvey © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2024

A terrível morte de Milk, obviamente, foi um golpe baixo e cruel em uma comunidade já tão sofredora e simbolizou uma tentativa de apagamento de uma luta que já existia há muito tempo. E que havia sido sinalizada de forma contundente com a Revolta de Stonewall em 1969, em Nova York, quando, no dia do funeral da lendária madrinha dos gays — e eterna Dorothy de O Mágico de Oz — Judy Garland (1922-1969), membros da comunidade LGBTQIA+ gritaram um basta à violência policial simplesmente pelo fato de existirem.

Com seu herói da vida real vítima de uma grande violência por ser quem era, a história de Harvey Milk comove e inspira o mundo, sobretudo a sua comunidade, mesmo quase cinco décadas após seu assassinato.

Não custa lembrar que em 2008, sua saga foi contada no cinema de forma brilhante pelo diretor Gus Van Sant e em atuação memorável de Sean Penn, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator. Filme que merece ser visto e revisto.

Ed Moraes no solo Eu Não Sou Harvey: poético quebra-cabeça de palavras sobre mártir gay © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2024

Em seu solo, a única montagem teatral sobre Milk já feita no Brasil, Ed Moraes se aproxima desse personagem icônico de uma forma nada óbvia, que já começa no nome do espetáculo: Eu Não Sou Harvey, frase que ele repete ao público algumas vezes durante a peça.

Afinal de contas, na proposta épico-dialética da autora e diretora Michelle Ferreira, o ator é e não é o personagem, que também pode ser ou não todos nós.

Um póetico quebra-cabeças de palavras, o texto busca referência no processo de defesa do assassino de Harvey, que usou o bolinho açucarado “twinkie” como possível causador do suposto transtorno que teria levado o supervisor Dan White a cometer o assassinato brutal.

A partir dessa defesa bizarra, a peça traça uma crítica contundente ao estilo de vida norte-americano, calcado no açúcar e no consumo, estilo esse que o Brasil anda copiando de forma desavergonhada nos últimos tempos, para nossa infelicidade. E reforça o respeito às diversidades.

Ed Moraes no solo Eu Não Sou Harvey: composição deliciosa em cena © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2024

Ed Moraes faz uma composição deliciosa em cena, com exímio trabalho de corpo e de voz. Ele é um ator stanislavskiano, que busca domínio da composição do ser que interpreta, apresentando nuances e modulações que tornam o personagem mais complexo e cativante.

Assistir a Eu Não Sou Harvey é uma obrigação de qualquer pessoa que preze pela liberdade e pelo respeito a todas as diversidades, além de poder ouvir sair da boca de um ator repleto de recursos um texto que provoca cócegas em cérebros inteligentes. E que estimula a curiosidade em torno de um personagem histórico que não deve ser esquecido pelas desmemoriadas novas gerações.

Com certeza, quem se sentar diante deste espetáculo sairá com o desejo de conhecer melhor o icônico personagem e mártir gay, que entregou sua própria vida para que tivéssemos o simples direito de ser quem somos. Certamente, onde estiver, Harvey Milk deve estar orgulhoso e agradecido a Ed Moraes. Nós também.

★★★★ EU NÃO SOU HARVEY
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado

Ed Moraes em Eu Não Sou Harvey © Rafa Marques Blog do Arcanjo 2024

EU NÃO SOU HARVEY

São Paulo 15 de fevereiro a 3 de março de 2024 – Quinta à sábado 20h e Domingo 19h. Centro Cultural São Paulo (CCSP) – Sala Jardel Filho. Rua Vergueiro, 1000, Paraíso – Metro Vergueiro, São Paulo, SP. Grátis. 14 anos.

Rio de Janeiro 8 a 31 de março de 2024. Teatro Municipal Café Pequeno. Av. Ataulfo de Paiva, 269 – Leblon, Rio de Janeiro. R$ 50 e R$ 25. 14 anos.

Ficha técnica
Texto e direção: Michelle Ferreira. Idealização e atuação: Ed Moraes. Iluminação: Karine Spuri. Direção Musical: Mau Machado. Cenário: Marcio Macena. Figurino: Ed Moraes. Técnico de Luz: Igor Sully. Fotos: Caio Oviedo. Designer gráfico: Pietro Leal. Orientação de processo: Georgette Fadel. Orientação corporal: Tainara Cerqueira. Assessoria Jurídica: Alber Sena. Produção: Arrumadinho Produções Artísticas. Direção de Produção: Ed Moraes.

Sinopse Um ator aceita o desafio de viver Harvey Milk, o primeiro homossexual autodeclarado a ser eleito para um cargo público nos EUA. Em 50 minutos, o ator percorre uma trajetória inusitada, que vai do Brasil colonial, até o assassinato de Harvey em 1978. Durante esse tempo, ele tentará provar a tese sobre o seu trágico assassinato.

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Ed Moraes na TV

Ed Moraes, além da peça Eu Não Sou Harvey, também pode ser visto na TV, no streaming Globoplay, nas séries Betinho: No Fio da Navalha, como o personagem Herbert Daniel, e em Notícias Populares, na qual interpreta o jornalista Gilbran.

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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