★★★★ Crítica: Ed Moraes valoriza ícone gay Harvey Milk no provocante solo Eu Não Sou Harvey
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Eu Não Sou Harvey
★★★★
Com 20 anos de carreira artística, Ed Moraes é um dos melhores atores de sua geração. Isso ficou muito evidente desde quando o vi pela primeira vez, no espetáculo Limpe e Todo Sangue Antes que Manche o Carpete, em 2011, que inaugurou sua Cia. dos Inquietos com o aclamado texto de Jô Bilac sob direção de Eric Lenate. Na obra, assim como a grande atriz Luna Martinelli, Moraes se destacava no elenco como uma composição altamente potente, fincando seu espaço na cena paulistana.
Agora, depois de muitas idas e vindas e uma pandemia no meio, ele comprova seu talento e sua sutil potência no solo Eu Não Sou Harvey – O Desafio das Cabeças Trocadas, espetáculo por ele idealizado e escrito e dirigido por Michelle Ferreira, outro grande nome de sua mesma geração.
Com a obra, em temporada gratuita e imperdível no Centro Cultural São Paulo, que estreou nesta quinta, 15 de fevereiro, e vai até 3 de março, ele celebra seus 20 anos de palcos. A comemoração depois prossegue no Rio de Janeiro, onde a peça faz temporada de 8 a 31 de março, no Teatro Municipal Café Pequeno, no Leblon.
Sobrevivente da pandemia
Eu Não Sou Harvey estreou pouco antes daquela loucura que todos vivemos em 2020 e precisou ser interrompida abruptamente, como quase tudo naquele então.
Afinal, foram tempos de medo e recolhimento em prol da vida. Quatro anos depois do trauma coletivo, o ator buscou forças e recursos onde sequer existiam para fazer com que essa temporada acontecesse — e nas duas principais capitais do País. O que é um esforço hercúleo digno de aplausos.
Ao realizar temporada gratuita de Eu Não Sou Harvey no mais importante centro cultural da maior metrópole brasileira, Ed Moraes demonstra a generosidade de um artista que pensa em acessibilidade e na formação de público. Afinal, um recado tão importante quanto o de Harvey Milk precisa reverberar em novas cabeças.
A peça se inspira em um dos ativistas mais importantes da luta LGBTQIA+ no mundo, Harvey Milk (1930-1978). Vereador eleito pelo bairro gay Castro, na São Francisco da Califórnia dos anos 1970, ele foi assassinado brutalmente por um colega de parlamento, Dan White (1946-1985), depois de ter feito história como o primeiro político norte-americano declaradamente gay a tomar posse em um cargo público.
A terrível morte de Milk, obviamente, foi um golpe baixo e cruel em uma comunidade já tão sofredora e simbolizou uma tentativa de apagamento de uma luta que já existia há muito tempo. E que havia sido sinalizada de forma contundente com a Revolta de Stonewall em 1969, em Nova York, quando, no dia do funeral da lendária madrinha dos gays — e eterna Dorothy de O Mágico de Oz — Judy Garland (1922-1969), membros da comunidade LGBTQIA+ gritaram um basta à violência policial simplesmente pelo fato de existirem.
Com seu herói da vida real vítima de uma grande violência por ser quem era, a história de Harvey Milk comove e inspira o mundo, sobretudo a sua comunidade, mesmo quase cinco décadas após seu assassinato.
Não custa lembrar que em 2008, sua saga foi contada no cinema de forma brilhante pelo diretor Gus Van Sant e em atuação memorável de Sean Penn, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator. Filme que merece ser visto e revisto.
Em seu solo, a única montagem teatral sobre Milk já feita no Brasil, Ed Moraes se aproxima desse personagem icônico de uma forma nada óbvia, que já começa no nome do espetáculo: Eu Não Sou Harvey, frase que ele repete ao público algumas vezes durante a peça.
Afinal de contas, na proposta épico-dialética da autora e diretora Michelle Ferreira, o ator é e não é o personagem, que também pode ser ou não todos nós.
Um póetico quebra-cabeças de palavras, o texto busca referência no processo de defesa do assassino de Harvey, que usou o bolinho açucarado “twinkie” como possível causador do suposto transtorno que teria levado o supervisor Dan White a cometer o assassinato brutal.
A partir dessa defesa bizarra, a peça traça uma crítica contundente ao estilo de vida norte-americano, calcado no açúcar e no consumo, estilo esse que o Brasil anda copiando de forma desavergonhada nos últimos tempos, para nossa infelicidade. E reforça o respeito às diversidades.
Ed Moraes faz uma composição deliciosa em cena, com exímio trabalho de corpo e de voz. Ele é um ator stanislavskiano, que busca domínio da composição do ser que interpreta, apresentando nuances e modulações que tornam o personagem mais complexo e cativante.
Assistir a Eu Não Sou Harvey é uma obrigação de qualquer pessoa que preze pela liberdade e pelo respeito a todas as diversidades, além de poder ouvir sair da boca de um ator repleto de recursos um texto que provoca cócegas em cérebros inteligentes. E que estimula a curiosidade em torno de um personagem histórico que não deve ser esquecido pelas desmemoriadas novas gerações.
Com certeza, quem se sentar diante deste espetáculo sairá com o desejo de conhecer melhor o icônico personagem e mártir gay, que entregou sua própria vida para que tivéssemos o simples direito de ser quem somos. Certamente, onde estiver, Harvey Milk deve estar orgulhoso e agradecido a Ed Moraes. Nós também.
★★★★ EU NÃO SOU HARVEY
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
EU NÃO SOU HARVEY
São Paulo 15 de fevereiro a 3 de março de 2024 – Quinta à sábado 20h e Domingo 19h. Centro Cultural São Paulo (CCSP) – Sala Jardel Filho. Rua Vergueiro, 1000, Paraíso – Metro Vergueiro, São Paulo, SP. Grátis. 14 anos.
Rio de Janeiro 8 a 31 de março de 2024. Teatro Municipal Café Pequeno. Av. Ataulfo de Paiva, 269 – Leblon, Rio de Janeiro. R$ 50 e R$ 25. 14 anos.
Ficha técnica
Texto e direção: Michelle Ferreira. Idealização e atuação: Ed Moraes. Iluminação: Karine Spuri. Direção Musical: Mau Machado. Cenário: Marcio Macena. Figurino: Ed Moraes. Técnico de Luz: Igor Sully. Fotos: Caio Oviedo. Designer gráfico: Pietro Leal. Orientação de processo: Georgette Fadel. Orientação corporal: Tainara Cerqueira. Assessoria Jurídica: Alber Sena. Produção: Arrumadinho Produções Artísticas. Direção de Produção: Ed Moraes.
Sinopse Um ator aceita o desafio de viver Harvey Milk, o primeiro homossexual autodeclarado a ser eleito para um cargo público nos EUA. Em 50 minutos, o ator percorre uma trajetória inusitada, que vai do Brasil colonial, até o assassinato de Harvey em 1978. Durante esse tempo, ele tentará provar a tese sobre o seu trágico assassinato.
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Ed Moraes na TV
Ed Moraes, além da peça Eu Não Sou Harvey, também pode ser visto na TV, no streaming Globoplay, nas séries Betinho: No Fio da Navalha, como o personagem Herbert Daniel, e em Notícias Populares, na qual interpreta o jornalista Gilbran.
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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