★★★★ Crítica: As Coisas Que Perdemos no Fogo mescla discurso feminista à força cênica de Juliana Lohmann

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
★★★★
AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Artistas são pessoas sensíveis que muitas vezes precisam ressignificar suas dores mais profundas em forma de obra de arte. É isso que se percebe no espetáculo As Coisas Que Perdemos no Fogo, sucesso de público no Centro Cultural São Paulo, com direito à fila de espera. O solo da atriz Juliana Lohmann [veja abaixo entrevista exclusiva com a artista], com dramaturgia e direção de Lara Duarte, mergulha nas profundezas do que é ser mulher no mundo de hoje. Ser deste gênero muitas vezes implica em silenciamentos, assédios, acusações e, sobretudo, julgamentos constantes. A inspiração da peça veio do conto homônimo da escritora argentina Mariana Enriquez, que propõe um realismo fantástico num futuro distópico no qual as mulheres se atiram no fogo por conta própria como manifesto. É preciso lembrar que o país hermano teve um grande levante feminista nos últimos anos, sobretudo nos anos de Kirchnerismo no poder, que culminaram com milhares de mulheres marchando com seus pañuelos verdes em frente ao Congresso Argentino, até que fosse promulgada a lei do aborto no fatídico ano de 2020. O avanço legal, pioneiro na América Latina, é contado no espetáculo, que navega também pelas vivências da própria atriz, desde sua experiência com a televisão, veículo ao qual amou desde pequena ao lado de sua avó, e até mesmo situações mais densas, como quando foi submetida a um episódio de assédio por um importante diretor de cinema. Não ficam de fora sua relação direta com Deus e as interferências da igreja evangélica. Se a peça começa mais onírica, logo conflui para a autoficção com recursos épicos. As várias queixas de um olhar feminino e feminista encontram uma poética cênica sofisticada, com várias nuances e camadas calcadas sobretudo no talento inquestionável da excelente atriz Juliana Lohmann e nas proposições interessantes e rítmicas da direção. O time criativo está coeso, seja nas propostas cenográficas, com o grande volume de cabelo ruivo em cena, na iluminação e na vibrante trilha sonora — o momento do louvor gospel é epifânico. Até as cenas mais soturnas criam belíssimas imagens. As Coisas Que Perdemos no Fogo é ponto alto do teatro alternativo e independente, com sua mensagem poderosa. Peça para ser vista e aplaudida de pé.
★★★★
AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Temporada CCSP – 04 a 26/05/2024 – Sextas e sábados às 20h, Domingos às 19h. Sessão extra do espetáculo dia 25/05 às 17h. Espaço Cênico Ademar Guerra – Centro Cultural São Paulo. Rua Vergueiro, 1000, metrô Vergueiro, São Paulo. Grátis. 16 anos. Os ingressos podem ser reservados online ou presencialmente. Para informações sobre a bilheteria física e online, clique aqui.
Ficha Técnica:
Direção e dramaturgia: Lara Duarte
Dramaturgismo: Juliana Lohmann e Maya de Paiva
Direção de movimento e Preparação corporal: CASTILHO
Assistência de direção: Maya de Paiva
Performance: Juliana Lohmann
Desenho de luz: Maíra do Nascimento
Operação de luz: Maíra do Nascimento e Marina Meyer
Direção musical e sonoplastia: Lana Scott
Composições: Lana Scott e Natália Nery
Operação de Som: Lana Scott e Viviane Barbosa
Preparação vocal: Natália Nery
Direção de Arte: Victor Paula
Instalação Cênica: Victor Paula
Cenotecnia: Anjelus Manuel e Edlene Sousa
Design de Aparência: Victor Paula
Costura e desenvolvimento: Nilo Mendes Cavalcanti
Peruqueira: Kitty Kawabuco
Design gráfico: Nina Nunes
Fotografia: Marcelle Cerutti
Contraregra: Jenn Cardoso
Estagiária: Larissa Siqueira
Produção: Corpo Rastreado – Keila Maschio
Assessoria de Comunicação: Pombo Correio

Entrevista do Arcanjo
Juliana Lohmann fala sobre a peça As Coisas Que Perdemos no Fogo
A atriz fluminense Juliana Lohmann, 34 anos, que está na peça As Coisas Que Perdemos no Fogo, sucesso no Centro Cultural São Paulo, fala ao Blog do Arcanjo sobre o espetáculo, em entrevista exclusiva a Miguel Arcanjo Prado. Leia a seguir.

Miguel Arcanjo Prado – Essa peça se inspira em texto argentino, onde mulheres ganharam força social recentemente e conquistaram o direito ao aborto, que agora governo Milei afirmou querer rever. Como foi essa interlocução com o conto argentino?
Juliana Lohmann – A ideia de usar o conto da Mariana Enriquez veio de Lara Duarte, a diretora, no desejo de trazer uma base ficcional de terror e fantasia para abordar a realidade das mulheres e da violência de gênero. Ao longo do processo, fomos adaptando algumas coisas como nomes de personagens, trazendo camadas pessoais e inserindo referências ao contexto brasileiro, mas entendemos que a realidade das mulheres no Brasil e na Argentina se aproxima muito. O conto já era carregado de tensões e contradições que dialogam com o que vivemos e seu tom absurdo e grotesco narrando mulheres que passam a, voluntariamente, se deformar em fogueiras parece dar mais ênfase ao próprio horror da realidade. Há muitas tensões em jogo quando falamos no avanço de direitos para mulheres e a autora joga com isso na sua narrativa sem apontar para uma solução fácil para o tema do feminicídio, por exemplo. A partir daí fomos complexificando ainda mais através dos temas que fomos costurando nessa narrativa principal, sem o desejo de apaziguar nada.

Miguel Arcanjo Prado – Como surgiu a ideia de ter cenografia e figurinos com cabelos?
Juliana Lohmann – Essa proposta também veio de Lara Duarte, mas foi algo mais intuitivo que surgiu da própria leitura do conto e das imagens que ele suscita. Existia o desejo de trazer a sensação do fogo sem ser literal e também de materializar o clima de estranheza e terror através de um elemento que conectasse os vários temas que atravessam a peça. Cabelo é um elemento que sintetiza muito a ideia de feminino, com os longos cabelos lisos de princesas e mesmo nas imagens classicas do feminino em quadros, por exemplo. Mas o cabelo fora da cabeça suscita muito nojo e abjeção principalmente nos corpos ditos femininos. Além disso, é um elemento que também trás uma camada do fantástico se pensarmos nas figuras cabeludas em filmes de terror e mesmo em mitos ao longo da história que o tem como símbolo de força e poder. Na pesquisa isso tudo foi se revelando também através das escolhas de cores, formatos e tamanhos dos cabelos propostas pelo figurinista e cenógrafo, Victor Paula, o que foi produzindo imagens que não imaginamos a princípio e expandindo as leituras possíveis.

Miguel Arcanjo Prado – Como foi incorporar a autoficçao ao texto original na criação desta obra? Que elementos de sua vida usou?
Juliana Lohmann – A autoficção é sempre um desafio no teatro contemporâneo. Como trazê-la de forma que não fique muito ensimesmada e dialogue com as experiências de outras pessoas? Lara Duarte, Maya de Paiva [responsáveis pelo dramaturgismo] e eu fizemos um trabalho de ir descobrindo juntas os pontos de conexão entre os materiais pessoais que fui trazendo, o conto e as discussões sobre feminismo e gênero. Eu venho de uma família de muitas mulheres que tem uma relação direta com o aborto e violência de gênero, além disso a religião evangélica permeia muito fortemente nossa experiência como família. Entendemos que essas são questões recorrentes para muitas mulheres e famílias no Brasil de hoje. E apostamos nelas para também potencializar o que já aparece no conto. De alguma forma a presença dos depoimentos autobiográficos adiciona camadas à narrativa e borrar as fronteiras entre real e ficção. Outra questão forte na minha vida é a relação com a TV, já que comecei a trabalhar ainda criança em novelas, daí fomos descobrindo que a linguagem televisiva também nos interessava para costurar ou borrar todas as linhas dramatúrgicas.
Miguel Arcanjo Prado – As mulheres de sua geração, sobretudo as de classe média e com mais acesso à informação, impuseram mudanças nos relacionamentos. Como é viver o desafio de descortinar o machismo e o patriarcado e ver o mesmo se materializar diariamente, inclusive nas relações amorosas?
Juliana Lohmann – É sempre bastante complexo desmontar práticas machistas e a cultura patriarcal quando o principal agente de violências é uma pessoa com quem temos relação de intimidade, confiança e amor, seja ele um pai, um irmão ou um companheiro. E eu acho que esse desafio é parte da vida de uma parcela significativa das mulheres do nosso país, em diversas posições sociais. Não dá pra deixar de notar que tem uma juventude muito consciente e engajada que vem questionando o papel da mulher nas relações domésticas e trabalhistas, muito influenciada também pela difusão das discussões feministas nas redes sociais, nas artes e nos grandes veículos de comunicação. Por isso, entendo que as discussões no espaço público, no sentido de questionar o lugar historicamente dado às mulheres, têm um papel fundamental na mudança dessa cultura e na garantia de informação para todas nós. Além disso, temos visto cada vez mais mulheres em posição de destaque falando abertamente sobre essas questões e isso tem nos inspirado a nos posicionar nas nossas relações também. Acredito que é um movimento sobretudo coletivo e é preciso construir redes para conseguir fazer esses enfrentamentos, compreendendo que a cultura patriarcal é danosa para todo mundo, inclusive para os homens. O desafio está dado e me parece que não há mais volta, é preciso nos fortalecer individualmente e principalmente enquanto rede de resistência e seguir avançando sem “ni una menos”, como nos ensinam as hermanas latinas.

Miguel Arcanjo Prado – A peça propõe um fim drástico para o fim da violência contra as mulheres: elas se atiram no fogo. Você enxerga alguma possibilidade de um mundo mais igualitário e menos opressor às mulheres?
Juliana Lohmann – Vislumbrar a possibilidade de um outro mundo é o que nos faz seguir vivendo, criando e lutando. Se não acreditássemos de verdade nisso, não faria sentido produzir discursos, participar de mobilizações, denunciar as violências e construir nossas redes. Se não acreditássemos no poder de transformação dos feminismos que acolhem todas as mulheres e pessoas que fogem das normas do patriarcado sequer estaríamos fazendo esse espetáculo. E é fato que, apesar do avanço reacionário que assistimos no mundo, o tema do combate ao machismo está sendo amplamente difundido, há muitos coletivos feministas atuando em todos os lugares e frentes. Existem também diversas políticas públicas surgindo e sendo aprimoradas no sentido de prevenir e combater violência doméstica, desigualdade salarial, garantia de direitos reprodutivos e buscando aumentar a participação de mulheres na política e em posições de poder. Tudo isso já revela caminhos concretos para a materialização desse mundo mais igualitário em que não só as mulheres cis, mas também pessoas trans como um todo, possam ser respeitadas e viver com dignidade.

Miguel Arcanjo Prado – Por que você faz teatro? E por que especificamente faz esta peça?
Juliana Lohmann – Acredito no poder de transformação que o teatro pode promover. Sempre tive o desejo de fazer um solo que contasse a trajetória feminina da minha família e, quando surgiu a possibilidade, chamei Lara Duarte pra chegar junto. Ela trouxe o conto e, com Maya de Paiva, fomos costurando a dramaturgia junto com os depoimentos. Também sempre tive o desejo de experimentar uma criação mais autoral, na qual eu pudesse colocar minha visão de mundo, me desafiar artisticamente e construir isso junto com pessoas que têm vivências em outras linguagens. Essa peça foi muito intensa e difícil, exigiu muito de mim corporalmente e é sempre desafiador dar luz à algo autoral, que se acredita, que dialoga com nossas próprias vivências. O processo de criação foi muito coletivo, com uma equipe majoritariamente composta por mulheres (cis e trans) e pessoas LGBTQIAP+ e fomos construindo caminhos de criação que eu tinha experimentado poucas vezes na minha carreira. Essa peça revela a força da coletividade e das narrativas feministas mesmo sendo um solo, porque cada pessoa que participou do processo trouxe seu olhar e sua criatividade para construir uma narrativa maior e mais diversa do que só a minha voz. Sozinha em cena me sinto vibrando junto com Lara, Maya, Maíra, Lana, CASTILHO, Victor, Natalia, Keila, Nilo, Angelus, Jenn, Larissa, Ana, Bruna… Toda a equipe e também ecoando pensamentos e lutas de tantas pessoas de dentro e de fora do teatro.
Agradecemos: Douglas Picchetti, da Pombo Correio.
Blog do Arcanjo mostra imagens exclusivas de As Coisas Que Perdemos no Fogo pelo olhar do fotógrafo Rafa Marques











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Editado por Miguel Arcanjo Prado
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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