★★★★ Crítica: A Casa dos Budas Ditosos é revisitada por Fernanda Torres após 20 anos e gera novas leituras

A Casa dos Budas Ditosos com Fernanda Torres tem baiana sexagenária e libertina que conta suas aventuras sexuais no Brasil do século 20 © Luciana Prezia Divulgação Blog do Arcanjo 2024

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo

★★★★
A CASA DOS BUDAS DITOSOS, com Fernanda Torres
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado

Era 1999, véspera do século 21, quando o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) lançou o livro A Casa dos Budas Ditosos, dentro da Coleção Plenos Pecados, sob o tema Luxúria. Instigado pela encomenda, o autor criou uma baiana arretada de 68 anos, que narra sua vida libertina, com todos os tipos de experiências sexuais possíveis, mas sem descambar para a vulgaridade gratuita. Em 2003, o texto rebuscadamente desavergonhado ganhou os palcos nacionais em formato de solo com Fernanda Torres, sentada em uma mesa diante de um microfone, na época com apenas 38 anos e impecável na pele da sexagenária. O desempenho contundente lhe rendeu o Prêmio Shell de Melhor Atriz em 2004. Desde então, a peça adaptada e dirigida habilmente por Domingos de Oliveira (1936-2019), segue inúmeras temporadas, sempre esgotando bilheterias de teatros a casa de shows, como nesta volta a São Paulo no no gigante Tokyo Marine Hall — a atriz dedicou a estreia à Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, público fiel ao espetáculo. Aos 58 anos, Fernanda Torres se aproxima mais da idade da personagem, o que lhe dá mais verossimilhança. É claro que, após um quarto de século, o texto de A Casa dos Budas Ditosos é recebido de novas maneiras pelo público, gerando novas leituras, o que se reflete nas risadas, como constatou este crítico, que viu a peça em 2005 e agora a reviu em 2024. Afinal, a sociedade mudou. Se no passado o público ria de forma desavergonhada mesmo nas cenas de maiores tabus ou politicamente incorretas, dessa vez há uma certa apreensão, perceptível nos momentos em que tange fronteiras delicadas. Como quando conta sua primeira experiência sexual com um adolescente trabalhador da fazenda de seu avô, em uma passagem típica de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1900-1987). Ela chama o adolescente de “negrinho”, sem com que ele tenha direito a nome, diferentemente dos demais personagens com os quais copula, e ainda define o mesmo de “praticamente escravo”. O trecho expõe como o racismo, antes naturalizado, hoje é visto de uma forma mais crítica, mesmo por uma plateia majoritariamente branca e privilegiada. Outro momento tenso é quando a personagem narra os incestos cometidos, sobretudo com um tio adulto, enquanto ainda era uma menina de 12 anos. Assim, atualmente, o público já não gargalha de tais passagens. Revisitar o texto de A Casa dos Budas Ditosos é ato corajoso da atriz, que acaba por trazer novo frescor à peça, recebida de forma distinta do que em sua estreia. Teatro é aqui e agora. E é fato que Fernanda Torres, uma das maiores atrizes de sua geração, imprime tanto carisma à personagem, fruto de seu domínio de voz e corpo, que nem nestes momentos de tensão ela perde a atenção dos espectadores. Isso também é fruto da engenhosa direção de Domingos de Oliveira, que imprime ao surpreendente relato um modo muito elegante, desprovido de hipocrisia e repleto de sutilezas, assimiladas pela atriz. O texto de A Casa dos Budas Ditosos é um retrato de um Brasil ainda no século 20 e que reflete as marcas coloniais, espelhando uma elite dita progressista, mas que, na prática, apenas repetia o modus operandis das capitanias hereditárias — é interessante como a personagem começa e termina com um “escravo sexual”, sobre o qual exerce seu poderio financeiro como forma de ter garantida a satisfação de seus desejos. A Casa dos Budas Ditosos é uma experiência interessantíssima. Porque ainda nos mostra o quanto Fernanda Torres segue sendo a genial atriz de sempre, o quanto o texto de João Ubaldo Ribeiro é delicioso até nos momentos mais perigosos, mas, sobretudo, nos revela, em nossa própria recepção atual, como a sociedade brasileira mudou nos últimos 25 anos, desde que tal história surgiu para, supostamente, libertar nossas mais profundas e inconfessáveis taras. Fazer a peça dialogar com o novo contexto social do Brasil é um exercício de reflexão que Fernanda Torres propõe a todos nós, em uma luxuriosa provocação artística. Será que estamos mais caretas ou mais conscientes?

★★★★
A CASA DOS BUDAS DITOSOS, com Fernanda Torres
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado

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Jornalista cultural influente e respeitado no Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo Pod. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra o júri de Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de São Paulo, Prêmio Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil de Curtas. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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