Ainda Somos os Mesmos cria memória do horror da ditadura na América Latina em filme de Paulo Nascimento
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Houve um tempo, e não faz muito tempo, que sua vida poderia ser extinta da noite para o dia pelo próprio Estado, que não teria nenhum tipo de satisfação a dar à sociedade ou lei à qual respeitar. Os generais ditavam as regras. O Estado Totalitário vigorou na América Latina na década de 1970, espalhando o medo e o terror em países como o Brasil, a Argentina, o Chile e o Uruguai. O filme Ainda Somos os Mesmos, de Paulo Nascimento, em cartaz desde 26 de setembro nos cinemas de todo o Brasil com produção da Accorde Filmes e distribuição da Paris Filmes, é memória crucial do horror das ditaduras latino-americanas e merece ser visto com atenção por aqueles que valorizam a democracia.
Ainda Somos os Mesmos conta a história de um jovem estudante de medicina brasileiro, Gabriel, interpretado por Lucas Zaffari, que, para fugir da perseguição da ditadura brasileira é enviado por seu pai, o poderoso empresário do ramo de calçados Fernando, para o Chile, então sob comando do presidente socialista Salvador Allende.
Contudo, em 1973 o golpe do general Augusto Pinochet mata Allende e instaura o chumbo também no Chile. Após ver sua companheira Helena presa, papel de Gabrielle Fleck, Gabriel finge estar morto no pelotão de fuzilamento e foge para a Embaixada da Argentina, onde fica aos cuidados do ético embaixador vivido pelo ator uruguaio Néstor Guzzini, que abriga outros refugiados.
A tensa situação, com militares a todo instante ameaçando invadir a Embaixada Argentina, vai até que o emissário da ONU, personagem do ator argentino Juan Manuel Tellategui, consiga ajudar Fernando a obter autorização para retirar Gabriel e seus companheiros estrangeiros do Chile, entre eles a corajosa guerrilheira brasileira Clara, papel de Carol Castro, e o inteligente guerrilheiro italiano interpretado por Nicola Siri.
O suspense político cria um elo com o Brasil atual ao colocar, nos créditos finais, imagens documentais da invasão de Brasília pelos golpistas fracassados de 8 de janeiro de 2023. “Queremos chegar com esse filme às novas gerações, onde falta uma memória sobre a ditadura”, explica o diretor, roteirista e produtor Paulo Nascimento.
“No Brasil há uma falta de memória sobre a ditadura. Na Argentina, no Uruguai, no Chile as coisas são bem diferentes. Então, a principal razão deste filme é falar sobre a memória. A falta de liberdade, viver com medo, não foi um fenômeno distante, foi algo que aconteceu no Brasil, aconteceu na nossa América Latina inteira, patrocinado por eventos que a gente sabe muito bem, que teve a CIA por trás, tudo, uma longa história, mas o modo operante foi o mesmo em todos os países”, recorda.
Big Brother da morte
Sobre aproximar Brasil e Chile na narrativa, inspirada pela história verídica do guerrilheiro e advogado João Carlos Bona Garcia, que morreu aos 74 anos vítima da Covid-19 em 2021, Nascimento diz que foi um reflexo da realidade. “Entre 1970 e 1973, muitos brasileiros jovens foram pro Chile, por conta da vitória do presidente socialista Salvador Allende, acreditando que lá estariam seguros, e foi justamente quando veio o golpe do Augusto Pinochet em 1973 e eles ficaram novamente sob perigo”, diz. “Muitos foram avisados, mas não acreditavam que Allende cairia, quando veio o golpe, pegou muitos de surpresa, e aí foi esse fenômeno de fuga para as embaixadas, onde as pessoas viveram uma espécie de Big Brother do horror que foi algo terrível. Um Big Brother da morte, onde você poderia sair no dia seguinte e ser morto. Muitos passaram por isso, como o cineasta Tabajara Ruas e tantos outros. Não dá para viver fora da democracia”.
Paulo Nascimento reforça que mesmo em momentos tristes para nossa democracia, com candidatos se agredindo violentamente nos debates, como nas eleições deste ano em São Paulo, ainda precisamos lutar pela democracia.
“Sem democracia é tudo pior”. E lembra que não está sozinho nessa. “Agora mesmo, temos também o filme do Walter Salles que vai nos representar no Oscar, Ainda Estou Aqui, que fala justamente disso, com a história da família do Rubens Paiva, deputado desaparecido na ditadura após ser preso pelos militares. Precisamos contar essas histórias terríveis para que não se repitam.”
Memória não é uma questão partidária, não é questão de vingança, é de manter a democracia viva, pois é o melhor regime possível. Precisamos mostrar para essa juventude de hoje que houve um tempo em que qualquer um poderia fazer uma denúncia contra você, inclusive uma denúncia falsa, e você ser preso, torturado, morto e ter seu corpo desaparecido pelo próprio Estado. Isso é o horror.
Paulo Nascimento
diretor de Ainda Somos os Mesmos
Coprodutor do filme, Edson Celulari, intérprete do empresário Fernando, que tinha relações com o regime militar, lembra que nem mesmo os familiares de quem estava ao lado da ditadura estavam ilesos às perseguições.
“Ele é um empresário, é um homem que quer fazer negócios com aquele governo, que por acaso é uma ditadura militar. E ele se assusta quando os militares o avisam que seu filho está numa lista de luta armada contra o regime. É quando ele descobre que o problema está na casa dele”, pontua o ator.
Celulari conta que seu personagem logo se movimenta. “Ele resolve mandar o filho ao Chile, que é um dos poucos países na região onde ainda há democracia. Na despedida, o filho, fragilizado, pede um abraço, e ele não dá. Na cabeça dele, para defender o próprio filho, que precisava enfrentar um novo mundo, ao qual deveria chegar forte, na visão daquele pai. E ele só vai abraçar o filho no fim do filme, já numa situação bem diferente”.
Filme corajoso e potente
Também coprodutora, a atriz Carol Castro, que faz a refugiada Clara, vê com emoção sua personagem chegar às telonas.
“É muito emocionante poder contar essa história baseada em fatos reais e mostrar um pouco da história desses brasileiros que ficaram 40 dias abrigados na Embaixada da Argentina no Chile em plena ditadura sangrenta de Pinochet em 1973”, fala. “Eu me envolvi tanto com o filme e minha personagem Clara que virei produtora associada. Este é um dos trabalhos mais diferentes que já fiz e muito forte na minha vida. Esse filme precisa ser visto. É necessário, histórico, corajoso e potente”, diz Carol Castro.
Lucas Zaffari conta que compôs o universitário Gabriel buscando referências históricas de jovens que abdicaram da própria vida em prol do ideal de um mundo mais justo e livre.
“Minha construção foi baseada na pesquisa do passado. Ainda hoje a gente acaba sendo afetado por questões muito parecidas como algumas do filme, infelizmente, mas a minha pesquisa realmente foi baseada na pesquisa do passado. O Gabriel perde a segurança do pai, vai para o Chile e pensa que nada vai acontecer, só que acontece. E ele precisa lidar com isso”, pontua Zaffari.
O ator argentino Juan Manuel Tellategui, que interpreta o intermediário da ONU na crise diplomática com os refugiados na Embaixada da Argentina no Chile, define o filme como uma ficção documental. “Por ser um filme baseado em fatos reais, Ainda Somos os Mesmos ganha uma dimensão documental, ao retratar a realidade histórica das ditaduras latino-americanas. Manter viva a memória e aproximar as novas gerações desse conhecimento foi a intenção do diretor Paulo Nascimento, e ele conseguiu fazê-lo com uma delicadeza e uma poesia comoventes. Poder fazer parte da equipe de atores que contam essa história é um privilégio e mais ao estar ao lado de atores tão consagrados e generosos como os meus colegas neste filme que narra uma grande história”, conclui o ator argentino.
Ainda Somos os Mesmos
Elenco:
Edson Celulari, Carol Castro, Lucas Zaffari, Nestor Guzzini, Nicola Siri, Carlos Falero, Rogério Beretta, Alvaro Rosacosta, Evandro Soldatelli, Pedro Garcia, Gabrielle Fleck, Jurema Reis, Juan Manuel Tellategui, Néstor Monasterio e Liane Venturella.
Ficha Técnica:
Direção, Roteiro e Produção: Paulo Nascimento
Produtores Associados: Edson Celulari e Carol Castro
Produção Executiva: Marilaine Castro da Costa, Flavio Barboza
Direção de Produção: Mônica Catalane
Direção de Fotografia: Renato Falcão
Direção de Arte: Eduardo Antunes
Figurino: Carol Scortegagna
Trilha Musical: Sílvio Marques
Canção tema: “Como Nossos Pais” de Belchior interpretada por Thedy Correa
Montagem: Marcio Papel
Videografismo, Design e Efeitos Gráficos: Aline Bastos D’Ávila
Desenho de Som: Walther Nunes
Gênero: Drama histórico/Suspense Político
País de Origem: Brasil e Chile
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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