Justiça nega censura à peça com travesti no papel de Jesus

Renata Carvalho em “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” – Foto: Saulo Ohara/Filo 2016/Divulgação

Por Miguel Arcanjo Prado

A Justiça negou o pedido de censura à peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, texto da dramaturga transexual escocesa Jo Clifford interpretado pela atriz travesti Renata Carvalho sob direção e tradução de Natalia Mallo. A peça, um texto ficcional inspirado em passagens dos Evangelhos, coloca uma figura marginalizada socialmente no papel de Cristo justamente para reforçar o ensinamento de Jesus de amor ao próximo.

A decisão, proferida pelo juiz José Antonio Coitinho, na 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, saiu nesta segunda (18), em resposta à ação movida por um advogado que pediu a censura da obra, mesmo sem ter assistido ao espetáculo. Segundo o jornal gaúcho Zero Hora, o advogado que moveu a ação confessou que “não assistiu à peça e que baseou a ação em textos publicados na imprensa”.

Na nova decisão judicial que manteve a peça em cartaz, o juiz José Antonio Coitinho afirmou que “não se pode simplesmente censurar a peça ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário”.

Renata Carvalho faz questão de ser chamada de travesti, e não de transexual, justamente para tentar mudar o estigma social que esta palavra carrega. “Que bom que existem juízes como José Antonio Coitinho, que tem esse entendimento e colocou com clareza sua sentença”, fala a atriz.

Exclusivo: “Nunca quis insultar a igreja”, diz autora escocesa

Em entrevista exclusiva ao Blog do Arcanjo do UOL, a dramaturga escocesa Jo Clifford, celebra a decisão judical contra a censura de sua peça no Brasil.

“Estou profundamente emocionada com a decisão do juiz José Antonio Coitinho. É raro encontrar um juiz que possa expressar-se com tanta clareza e paixão e que entenda plenamente a importância dos direitos do indivíduo para se expressar de acordo com sua identidade e dos direitos da liberdade de expressão do artista. Estou imensamente agradecida a ele”, declara a escocesa.

“Eu, juntamente com os meus colegas da peça ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’, somos absolutamente solidários com a nossa corajosa peça-irmã no Brasil. E eu repetiria que minha intenção nunca foi insultar ou atacar a igreja cristã. Venero profundamente a figura histórica de Jesus, e minha peça é a expressão da minha devoção”, afirma Jo Clifford.

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Com a liberação judicial, estão mantidas as apresentações da peça no 24º Porto Alegre Em Cena com ingressos esgotados, nesta quinta (21) e sexta (22), no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. Porto Alegre é a mesma cidade na qual a exposição “Queermuseu” foi cancelada com polêmica no Santander Cultural.

A dramaturga escocesa Jo Clifford durante sessão da peça no FIT-BH, em 2016: sucesso de público e de crítica – Foto: Guto Muniz/Divulgação

Mensagem de amor ao próximo

Este colunista viu a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” interpretada por sua autora, Jo Clifford [leia a crítica] e também a versão com Renata Carvalho. O texto reforça a mensagens de amor ao próximo pregada por Jesus, interpretada por uma atriz que integra um grupo atacado e fortemente marginalizado na sociedade brasileira: o das travestis e transexuais, pertencentes à comunidade LGBT.

O texto de Jo Clifford, que apresentou a peça com sucesso em 2016 no Festival Internacional de Teatro de Belo Horizotne, recorda ensinamentos de Jesus como “amarás teu próximo como a ti mesmo”, “não julguer para não ser julgado” e “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”.

Renata Carvalho em “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” – Foto: Bob Sousa

Censura em Jundiaí

Na última sexta (15), o juiz Luiz Antonio de Campos, da 1ª Vara Cível de Jundiaí, censurou a apresentação da peça na cidade, no Sesc Jundiaí. O Sesc recorre da decisão.

Censura a obras artísticas lembra os tempos da ditadura militar, época em que este tipo de ação era corriqueira. Desde o fim da ditadura, a Constituição de 1988 garantiu a liberdade de expressão artística no Brasil.

Confira na íntegra a decisão o juiz José Antonio Coitinho, que negou a censura à peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, em Porto Alegre:

“Há que ser indeferido o pedido liminar.

Não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano.

O crime e a imoralidade que fere têm de ser oprimidos pelo julgador. A liberdade preservada.

A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, propõe – fato notório – uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa.

Ao juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé – ou a falta desta – da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura.

Há pouco tempo, assistimos ao assassinato de cartunistas franceses do Charlie Hebdo, que satirizaram questões religiosas. Na essência, foram censurados. Censurados por expressar sua maneira de pensar.

Não, ao juiz não compete censurar a fé ou sua ausência.

A alegada questão da sexualidade de personagens, imaginada para o espetáculo, é absolutamente irrelevante. Transexual, heterossexual, homossexual, bissexual, constituem seres humanos idênticos na essência, não sendo minimamente sustentável a tese de que uma ou outra opção possa diminuir ou enobrecer quem quer que seja representado no teatro.

Não se está a defender que é correta a total liberdade de escolha sexual e muito menos a condenar essa postura. Defendemos a liberdade de escolher, de toda pessoa escolher, de acordo com sua evolução, o que fazer de sua vida, em todos os aspectos, mantido o respeito pelo seu semelhante.

Preciso é, de pronto, dizer que, gostemos ou não, a famigerada peça é, sim, uma obra de arte. Neste aspecto, dentro da subjetividade inerente ao tema, possível arriscar que erra o autor quando afirma “isso não é arte”.

Antes da estreia na capital gaúcha, já está aflorando paixões. Ódio, parece já ter despertado.

O que melhor consistiria em arte do que a obra que toca, acaricia ou fere, os sentimentos humanos? O ajuizamento da presente demanda e as angústias que vertem da inicial são a prova contundente de que, de arte, estamos a falar.

Claro que, como tal, está sujeita a toda crítica e o processo judicial a critica duramente.

Não estamos falando de encenação que será transmitida em televisão aberta. Tampouco em televisão a cabo. Nem em rádio serão ouvidas as falas dos artistas. Não vai invadir nossas casas e atormentar o imaginário de nossos filhos ou vilipendiar a moral dos idosos.

Trata-se de espetáculo – funesto ou abençoado – que terá lugar em ambiente fechado, cujo ingresso demandará despender dinheiro, não sendo permitida a entrada de pessoas com idade inapropriada. Na ficha técnica consta “classificação: 16 anos”. A nossos filhos em tenra idade não alcançará, a não ser que assim desejemos e para tanto diligenciemos. Não há falar em agressão à cultura ou à formação do caráter de quem quer que seja.

No popular, diríamos, irá quem quiser ver.

E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais.

“Je suis Charlie”
Porto Alegre, 19 de setembro de 2017
Dr. José Antoino Coitinho – Juiz de Direito”

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