Crítica: Pessoas de bem podem ser repulsivas, mostra peça Dogville

Fábio Assunção vive um dos vilões que atormentam a vida de Grace, vivida por Mel Lisboa, na peça “Dogville” no Teatro Porto Seguro – Foto: Manuela Scarpa/Brazil News – Blog do Arcanjo – UOL
Protagonizada por uma segura Mel Lisboa e com um intenso Fábio Assunção no elenco, a peça “Dogville” é destaque no Teatro Porto Seguro, em São Paulo, onde pode ser vista até 31 de março, de sexta a domingo.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Dogville” ✪✪✪✪
Avaliação: Muito Bom
A intensa adaptação para os palcos do filme “Dogville” de Lars von Trier pelo diretor Zé Henrique de Paula mostra que pessoas de bem podem ser repulsivas e, no fundo, repletas de maldade em seus corpos e mentes.
A peça é estrelada por Mel Lisboa, que trilhou farto caminho nos palcos paulistanos — com direito a altos e baixos — até se ver diante de Grace, a fugitiva que se abriga em um pequeno povoado norte-americano onde passa a ser subjugada pelos moradores locais que antes prometiam ajudá-la.
Sem dúvida, trata-se da grande personagem da atriz no teatro até o momento. Com ele, Mel vai além da memória curta de muitos que apenas a associam à minissérie “Presença de Anita”, de Manoel Carlos, seu mais marcante papel na TV quase 18 anos atrás.
Em “Dogville”, Mel mostra que cresceu e amadureceu: transita com delicada competência por duras sensações humanas ao longo da peça e, certamente, evoluirá ainda mais no decorrer da temporada no Teatro Porto Seguro.
Se a forasteira representa o outro naquela triste vila, seus moradores são o status quo: gente que estabeleceu uma ordem social calcada na cumplicidade mútua para suas pequenas e grandes maldades cotidianas, como o desenrolar da obra explicita, estabelecendo que eles são os “normais”.
Assim, aquelas pessoas que se vendem como bondosas são, na verdade, gente repleta de ódio e desprezo humano, pronta para se bestializar assim que as luzes se apagarem.

Fábio Assunção e Mel Lisboa em cena da peça “Dogville” no Teatro Porto Seguro – Foto: Manuela Scarpa/Brazil News – Blog do Arcanjo – UOL
Apesar da parafernália tecnológica tão adorada pelo teatro contemporâneo, sobretudo as projeções na tentativa de flerte com o cinema que inspira a montagem — que na sessão vista por este crítico não funcionaram a contento —, Zé Henrique de Paula faz bem por calcar sua encenação em seu numeroso grupo de atores, que crescem, sobretudo, quando contracenam e nos recordam que a ação é fundamental ao drama e ao teatro.
Depois da frágil montagem teatral para “1984”, clássico texto futurista distópico de George Orwell que foi levado aos palcos no ano passado pelo mesmo diretor, Zé Henrique surge mais seguro no comando da equipe de “Dogville”, conseguindo construir um conjunto de atuações mais coeso e menos infantilizado que o visto na peça anterior.
No elenco, o talentoso Eric Lenate funciona muito bem como o narrador da história, apesar de repetir maneirismos já vistos em suas atuações anteriores, e cresce, sobretudo, na reta final da montagem, quando ganha mais um personagem definitivo para a conclusão da história.
Refletindo o cuidadoso trabalho da preparadora de elenco Inês Aranha, os atores que interpretam os moradores da vila mostram intensidade e presença cênica, mesmo com falas curtas, mas muito bem aproveitadas por nomes experientes como Selma Egrei, Fernanda Couto, Bianca Byington, Chris Couto e Blota Filho.
Como um repugnante “pai de família”, que abusa da protagonista em uma das cenas fortes da peça, Fabio Assunção encarna o pior da masculinidade com competência e acerta na sutileza com que constrói seu asqueroso personagem.

Maldade travestida de bondade: Fábio Assunção e Mel Lisboa (ao centro) na peça “Dogville” com o numeroso elenco dirigido por Zé Henrique de Paula – Foto: Ale Catan – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL
Rodrigo Caetano também se sobressai como o sonso morador que se faz de apaixonado pela protagonista, na verdade apenas uma cortina de fumaça para sua própria covardia. Seu personagem é crível e tão banana quanto tantos que conhecemos por aí, gente escrota que conquista poder com suas omissões de caráter.
Anna Toledo, como a moradora responsável por tocar o sino da vila, destoa do todo, apostando em uma construção de personagem que beira o clown, que se torna difícil de se encaixar na obra.
Completam o elenco a criança Dudu Ejchel (ótima na construção da maldade infantil; quem nunca conheceu uma criança má, certamente fruto da influência ao seu redor?), Fernanda Thurann, Gustavo Trestini, Marcelo Villas Boas, Munir Pedrosa e Thales Cabral, todos atentos por aproveitar seus momentos de destaque.
Os figurinos de João Pimenta prezam por uma elegância simples e certeira, que ganha ainda mais força diante do visagismo cuidadoso de Wanderley Nunes e da iluminação feita com sutileza por Fran Barros, em casamento acertado com a cenografia simples e eficiente de Bruno Anselmo, que enche o palco de cadeiras de madeira.
A trilha original composta por Fernanda Maia também é aliada do desenrolar do drama, intensificando sentimentos em personagens e público.

Mel Lisboa é Grace na peça “Dogville”, adaptação para os palcos do filme estrelado por Nicole Kidman em 2003 dirigido por Lars von Trier – Foto: Ale Catan – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL
A crueldade exposta no espetáculo deixa o público atormentado, sobretudo diante do Brasil contemporâneo, com discurso moralista e, até mesmo, assassino, partindo o tempo todo de bocas de cidadãos que se autointitulam “gente de bem”.
De tal forma, “Dogville”, acertada produção de Felipe Lima, se torna um triste espelho da sociedade brasileira atual. Vê-lo é necessário, mas não deixa de ser indigesto.
A intimidade seca e violenta que “Dogville” revela é aterrorizante e pessimista em relação à única espécie animal que se define como racional, mesmo que esteja, cada vez mais, submersa na irracionalidade. E na maldade.